O tão aguardado Campeonato do Mundo está prestes a começar, e com a aproximação da sua realização, várias críticas têm vindo à superfície.
O Campeonato do Mundo é uma competição internacional quadrienal, organizada pela FIFA, que se estreou em 1930. Este ano, o tão aguardado Mundial será realizado no Catar. Há, no entanto, várias questões que devem ser aqui trazidas à colação, e que tornam este Mundial como o mais polémico da história, e alvo de muitas críticas.
Trabalho forçado e mortes no trabalho
Desde 2010, ano em que foi anunciado o acolhimento do Mundial por este país, têm vindo a ser realizadas construções de infraestruturas para suportar um evento desta dimensão. Vários relatos têm sido partilhados relativamente às condições de trabalho sub-humanas enfrentadas pelos funcionários, sendo a sua grande maioria emigrantes (nomeadamente da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh).
A Amnistia Internacional lançou um relatório denominado Eles pensam que somos máquinas que, com base em entrevistas de 34 funcionários (guardas de segurança) de 8 diferentes empresas privadas do Catar, nos revela o meio envolvente daqueles que trabalham para a realização deste mundial. Aqui encontramos relatos que demonstram as atrocidades que não chegam até nós, e que, se chegam, ignoram-se e escondem-se por detrás do desejo de ver uma competição deste calibre. Os testemunhos presentes neste relatório enumeram-nos inúmeras violações de direitos humanos, descrevendo, através de testemunhos reais, as míseras condições vividas no Catar.
No âmbito do estudo realizado pela Amnistia Internacional, 85% dos entrevistados afirmam ter trabalhado 12 horas diárias, muitos deles 7 dias por semana. A maioria destes afirma frequentes recusas de descansos semanais, tendo trabalhado 7 dias por semana durante meses (alguns até anos). Para poderem tirar um dia de descanso, era necessária autorização expressa dos empregadores (na maioria das vezes, recusada) e, quando gozavam de uma folga, viam o seu salário reduzido em quantias elevadas.
São também penalizados em caso de doença, sendo necessária declaração médica expressa, aprovada pelo empregador. Pensemos, no entanto, que o contexto destes trabalhadores, sendo a maioria emigrantes, não facilita (e a maior parte das vezes não permite de todo) o acesso a cuidados de saúde.
Em diversas situações, são penalizados arbitrariamente, nomeadamente quando façam pausas para ir à casa de banho sem deixar alguém que os substitua, quando não usem devidamente o uniforme, quando não façam a barba e quando utilizem o telemóvel (ainda que em casos de urgência). Inúmeros relatos demonstram estas sanções arbitrárias: num salário de 1.650 riais catarianos (o equivalente a aproximadamente 450 euros), por uma ida à casa de banho sem substituição imediata, 1.000 foram retirados; por não ter a camisa bem colocada, um trabalhador pode perder 500 riais; por tirarem um dia de descanso, podem perder 100/200 riais. Muitas vezes os trabalhadores só têm conhecimento destas deduções no momento da entrega do salário mensal. Assim, ao fim do mês, acabam por ver o seu salário reduzido a pouco ou nada, sendo pagas apenas 8 horas diárias e havendo sucessivas deduções ao salário.
Grande parte dos funcionários pagou mesmo taxas de recrutamento, de valores elevados, para depois perceberem que tudo aquilo que lhes tinha sido prometido, eram promessas vazias – promessas de condições salariais e de vida.
Esta ilustração mostra-nos que as condições às quais se submeteram os trabalhadores podem qualificar-se como trabalho forçado. A Convenção sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório da Organização Internacional do Trabalho (adotada em 1930) define trabalho forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente”.
Mais gritante que o referido, são os dados divulgados pelo jornal britânico The Guardian, contabilizando a morte de 6500 trabalhadores emigrantes na construção de infraestruturas para o Mundial. No entanto, as autoridades do Catar confirmam apenas 37 mortos, justificando e registando as restantes como mortes por “causa natural”.
Um outro estudo da Amnistia Internacional, intitulado In the prime of their lives, retrata as condições de vida dos trabalhadores e a falha do Catar na investigação, compensação e prevenção de mortes de trabalhadores migrantes.
Grande parte das mortes resultam, não de acidentes industriais, mas sim de doenças contraídas como resultado da exposição a fatores de risco – incluem-se aqui o calor intenso (tendo a temperatura atingido os 45º Celsius nos meses de verão) e as excessivas horas de trabalho. No entanto, a grande maioria das mortes de funcionários são oficializadas como sendo resultado de “causa natural” e categorizadas como “não relacionadas com o trabalho”. Estas mortes não têm sido investigadas nem explicadas devidamente. Há uma falta de clareza e transparência por parte das autoridades do Catar.
Inúmeras mortes foram contabilizadas; contudo, inversamente proporcional é o número de compensações atribuídas às famílias: nenhuma das famílias (contactada pela Amnistia Internacional no âmbito do estudo) recebera qualquer tipo de compensação. Não havendo investigação das mortes, não é possível prová-las como consequência das condições de trabalho e negligência por parte das autoridades do Catar. Assim sendo (e tendo a esmagadora maioria sido declarada morte por causa natural), fica precludida a possibilidade de obtenção de uma compensação por parte dos familiares. Isto consubstancia uma violação de leis internacionais (e mesmo de leis nacionais).
Proibição da homossexualidade
O Catar é um país islâmico, que tem como legislação base a lei islâmica (Sharia). De acordo com esta, são proibidas relações entre pessoas do mesmo sexo.
Recentemente, Khalid Salman, embaixador do Mundial de 2022, diz, em entrevista, que a “homossexualidade é uma doença mental”, sendo, por essa razão, proibida. A lei do Catar condena a homossexualidade como crime, sendo esta punível com pena de prisão. Salmam admite a presença de pessoas homossexuais no Catar, porém, adverte para a essencialidade que é o cumprimento das normas nacionais do Catar.
Tem-se afirmado que haverá clima de tolerância quanto a demonstrações de afeto homossexual no Catar, desde que não seja manifestamente desrespeitosa (por exemplo, afeto homossexual junto a mesquitas). No entanto, se a lei nacional que proíbe estes comportamentos não se encontra suspensa, como é que poderá ser efetivamente garantida essa tolerância? Apenas aquando da realização do evento é que poderemos concluir pela efetiva segurança dos adeptos da comunidade LGBT+.
Restrições à liberdade de imprensa
Outra questão é a de saber aquilo que poderá ser transmitido pelos jornalistas e pelos media, que terão de medir ao pormenor as suas palavras, uma vez que serão reprimidos caso ultrapassem os limites impostos pela legislação do Catar.
Aquilo que nos passará, ser-nos-á transmitido de forma controlada – existe, para os jornalistas, um Código de Conduta que impõe restrições (nomeadamente a proibição de captação de imagens de zonas residenciais, edifícios governamentais, universidades, hospitais e locais de culto) que eles terão de aceitar.
Algumas regras têm vindo a ser alteradas, como, por exemplo, a revogação da regra que proibia jornalistas de fazer “reportagens ofensivas para a cultura qatari ou os princípios islâmicos”. No entanto, esta recente alteração de regras e a ambiguidade destas leva Jemimah Steinfeld (Index on Censorship – ONG que tem como objetivo a promoção da liberdade de expressão) a admitir que isto é uma técnica propositada “para que as televisões acabem por ceder pela cautela”.
Há quem defenda que a realização do Campeonato do Mundo no Catar significa uma banalização do regime autocrático e dos seus ideais e, tendo em conta o panorama em que este se realiza, há quem fale numa “escravatura na era moderna”. O Campeonato do Mundo é um evento que move milhões de pessoas e os países que o recebem serão um espaço de multiculturalidade e de diversidade. Questiona-se e duvida-se se o Catar estará em condições de receber milhões de pessoas, e se será um espaço de abertura e tolerância. Estamos a instantes de ver como será a realidade do Mundial 2022.
Sofia Ferreira
Departamento Sociedade
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