Baseado em factos reais e em Serotonina, de Michel Houellebecq
“Os primeiros antidepressivos conhecidos (Cipralex, Prozac) aumentavam a taxa de serotonina no sangue inibindo a sua recaptação pelos neurónios 5-HT1. A descoberta no início de 2017 do Capton D-L abriria caminho a uma nova geração de antidepressivos, com um mecanismo de atuação finalmente mais simples. (..) Desde o final de 2017 que o Capton D-L passou a ser comercializado com o nome Captorix. Mostrou-se logo de uma eficácia surpreendente, permitindo aos doentes integrar com facilidade renovada os ritos maiores de uma vida normal no meio de uma sociedade evoluída (higiene, vida social reduzida à boa vizinhança, tarefas administrativas simples), sem nunca estimular, ao contrário dos antidepressivos da geração precedente, a tendência de suicídio ou automutilação.
Os efeitos secundários indesejáveis mais frequentemente observados do Captorix são as náuseas, a diminuição da libido e a impotência.
Nunca tinha tido náuseas.”
(Pequeno trecho retirado das páginas 9 e 10, para aguçar o apetite e preparar para o que aí vem.)
Florente-Claude Labrouste tem 46 anos e detesta o seu nome. Bem-sucedido financeiramente, trabalha como agrónomo para o governo francês e vive num apartamento em Paris, com a sua companheira Yuzu, com quem mantém um relacionamento que não é mais capaz de despertar nele qualquer alegria. Leva uma existência sofrida em que lhe dói o ser, dói-lhe a alma. Tanto a vida afetiva como o trabalho causam-lhe apenas insatisfação, aliás, nada mais à sua volta parece provocar nele qualquer emoção. Nem mesmo Proust ou Thomas Mann são capazes de salvar o nosso protagonista. Tragado pela depressão, decide largar tudo para percorrer o país, morando em hotéis e vagabundeando por cafés e restaurantes. À medida que se vai afundando cada vez mais na sua doença, leva-nos a conhecer também o retrato de uma França perdida.
Mudem-lhe o nome, a idade e a localização geográfica e esta personagem poderia ser qualquer um de nós. De facto, esta já é uma realidade para quase um milhão de portugueses, entre os quais se encontram crianças e jovens. A doença do século não escolhe género, idade ou estratos sociais, incidindo, contudo, com uma maior relevância nos grupos mais vulneráveis. À semelhança de Florente, os sintomas traduzem-se na inabilidade de ver o mundo a cores, reduzindo a paleta a uma vida cinzenta. A depressão manifesta-se, assim, quase que como numa enfermidade própria da alma. Ao contrário de um osso partido, que se queixa, clamando urgentemente por remendo, o estado anímico é facilmente camuflado e ignorado, o que leva a uma sucessão de dias apáticos que culminam no estado depressivo. Atribuir a designação de doença a uma depressão ainda é encarado com estranheza. O médico desejar as melhoras, para uma doença não palpável, ainda soa mal.
Quando o assunto é saúde mental, surge ainda associada a ideia de “capricho globalizado”. A procura tardia pela cura explica-se ainda pelo tabu associado à patologia. Para além disto, à luz de uma sociedade cada vez mais exigente, a vulnerabilidade é assumida como sinónimo de fraqueza. É vendida a ideia dicotómica dos fortes em detrimento dos fracos, que se deixam sucumbir no seguimento do seu coração vulnerável.
Quanto a Michel Houellebecq, levantam-se algumas polémicas, dividem-se opiniões. A sua escrita depressiva vem rapidamente ao de cima, como um ponto vincado que o define por histórias aparentemente cruas e sombrias. A escrita é incisiva e o autor é mordaz, irónico e muitas vezes inconveniente. Contudo, é ao colocar o dedo na ferida que traz à tona assuntos tão atuais como relevantes.
Serotonina é um livro escrito à luz de um tema universal: a procura da razão de viver e a busca constante por respostas. O protagonista é o retrato dos nossos tempos. À luz da depressão que o consome, a personagem tece, nas sequências finais, algumas das melhores reflexões sobre como a encarar e, quem sabe, dar a volta às frustrações e deceções. “Não se pode deixar o sofrimento aumentar além de certo grau, do contrário a gente faz qualquer coisa”. O livro é um manual sobre como não morrer enquanto a vida nos pulsa cá dentro, em que o primeiro passo é permitir-se ser vulnerável.
Quando se apaga a mais pequena fagulha que alimenta o espírito e o brilho que acende o olhar, é mais do que altura de pedir ajuda. Há aqueles que a buscam numa tentativa de reaver aquilo que perderam, a cor que acreditam poder voltar a assumir. Outros esquecem-se de tal forma da cor, das suas formas e feitios, que preferem acabar ali, colocando termo ao sofrimento de forma rápida e atroz. Os primeiros tiveram sorte. Aos segundos faltou uma mão amiga. Alguém que lhes desse um cartão de ajuda.
Sejamos a mão amiga.
Linhas de apoio e de prevenção do suicídio em Portugal
SOS Voz Amiga
213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660 (das 16h às 24h)
Linha Verde gratuita - 800 209 899 (das 21h à 24h)
Conversa Amiga
808 237 327 - 210 027 159 (das 15h às 22h)
Voades - Vozes Amigas de Esperança
222 030 707 (das 16h às 22h)
Telefone da Amizade
228 323 535 (das 16h às 23h)
Voz de Apoio
225 506 070 (das 21h às 24h)
SOS Estudante
915246060 - 969554545 - 239484020 (das 20h à 1h)
Mariana Polido
Departamento Cultural
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