Palácio de Inverno de São Petersburgo, o coração do Mundo. É para aí que Hannes Schuler nos leva: para a mítica e fatal residência dos Romanov, onde, durante cerca de trezentos anos de dinastia, a dos czar, se viveu a ascensão e a queda na sua forma mais pura.
Aquelas majestosas paredes palacianas foram a causa do seu próprio definhar. Outrora, consideradas eternamente belas. Encontram-se hoje, depois de tantos anos, ainda manchadas de sangue derramado pelos poderosos e ricos homens que habitaram aquela trágica Casa.
Muito à semelhança de outros períodos históricos, como o reinado do Rei-Sol na França, a Rússia foi conivente, através da sua moradia, com uma autêntica vida de fachada: por fora, glamour e riqueza; por dentro, a mais atroz miséria. Não, não é a capa da revista Time a respeito de Oliveira Salazar, ainda que isso fosse, de facto, possível.
Esta grandiosidade vive-se apenas quando Carlota da Prússia, posteriormente convertida pela ortodoxia russa para Alexandra Fiodorovna, casa com Nicolau II. Para muitos, um mero casamento político, uma brutal forma de fazer negócios: o costumeiro jogo de equilíbrio de poderes políticos lá pelo Velho Continente. Para outros, uma história de amor. O certo é que, independentemente do regime optado, este casal foi o símbolo máximo da perfeição. Assim como foi a via mais rápida de chegar ao controlo absoluto.
O ex-imperador e a sua princesa czarina compreendiam-se mutuamente. Amavam-se. Ela venerava-o por ser o digno arquétipo de homem: alto, ultraconservador, militarista, sexual. Ele respeitava-a pela sua boa educação, pelos seus distintos dotes maternos, o seu desinteresse pela política, a eloquente arte de saber governar.
Tiveram um santuário só seu. Ali viveram o idílico da vida privada, quase como pessoas normais. Uma verdadeira história de amor, devemos nós reconhecer. O maior problema foi quando o herdeiro ao trono radicalizou as suas opções. E aqui, a despeito, dirijo-me a todos aqueles que foram um Nicolau: pela traição e pelo adultério, por tudo.
Alexandra Fiodorovna carregou, durante quarenta funestos anos, o peso de todas as princesas czarinas: os convívios com as aias nos bailes e a constante presença das amantes nos seus próprios aposentos, sabendo lá nós dos muitos outros (in)discretos casos que assombraram o Palácio de Inverno. No entanto, não ficava por aqui o seu dever.
Tornava-se imperioso que uma imagem de família feliz passasse para o exterior, cabendo a ela representá-lo: a ilustre mãe e os seus sete filhos, fora os abortos. Enquanto isso, o marido traí-a. A isto dá-se o nome de regular manutenção das tradições e costumes: a aceitação dos imperativos do esposo com plena devoção. Estava mais que habituada a essa forma de vida, talvez até mesmo fadada a tal. Era por isto que escolhiam as alemãs.
Os Romanov tiveram o seu destino traçado ao tentar preservar o seu legado, na medida em que sem ele a Rússia não existiria. Facilmente colapsaria, dissolvida nas areias do tempo. Sendo nós herdeiros da História e estando na frente da linha sucessória, até quando continuaremos a aceitar esta sua herança repleta de mentiras, de preceitos patriarcais, de juízos retrógrados e de aparências?
Até lá, à última czarina. Às nossas avós, às nossas mães, às nossas irmãs, às nossas filhas. Às mulheres que existiram, às que hoje existem e que por isso lutam, às que estarão por vir. Deixo-vos com o testemunho da última do seu nome: Fiodorovna.
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