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Foto do escritorInês Barbosa

O trabalho doméstico não remunerado: o trabalho que ninguém (quer) vê(r)

Só em 2020 é que tive contacto com o conceito de trabalho doméstico não remunerado, mas há muito que o via diante dos meus olhos, como se de uma naturalidade se tratasse.


O que quer então dizer este termo?


O trabalho de cuidado doméstico não remunerado ou trabalho informal não remunerado refere-se ao cuidado prestado a crianças ou outros dependentes, como idosos e familiares doentes. Além disso, envolve tarefas como cozinhar, limpar, fazer compras e arrumar. Como já seria previsível depois desta descrição e tendo em conta o nosso contexto patriarcal, neste caso, na sociedade portuguesa, este trabalho é sobretudo realizado por mulheres. Digo-vos então algumas preocupações e observações que ocupam parte do cérebro da maioria das mulheres diariamente: “o que vou fazer hoje para o jantar? o meu filho não gosta de peixe então tem de ser algo que todos gostem, para dar menos trabalho”; “ontem o meu marido perguntou-me pela camisa preta, tenho de pôr tudo a lavar hoje”;” não sei se consigo ir buscar hoje a minha filha à escola, vou ver se peço ao meu marido”;” já se tem de trocar os lençóis das camas e dar um jeitinho às casas de banho”;” será que o miúdo precisa de explicações a inglês?”;” tenho de marcar a consulta ao meu pai e ir à farmácia levantar a receita dele”; “talvez ponha os miúdos em algum desporto, faz-lhes bem”; “ vou ver se começo a dar caminhadas, também para descansar um bocado a cabeça”; “tenho de pensar também no jantar de amanhã porque vou hoje ao supermercado”. Fiquei cansada só de escrever isto. Mas a verdade é que existe uma espécie de obrigação silenciosa, desde muito cedo, para que as mulheres assumam o cargo de cuidadoras e de pessoas que se preocupam e tratam de tudo e todos. Tal “obrigação” não é recente, há séculos que as mulheres prestam estas atividades quando o trabalho remunerado era ainda reservado, quase na sua maioria, aos homens. No entanto, com o feminismo a ganhar cada vez mais força e com uma crescente conquista dos direitos das mulheres, o trabalho não remunerado realizado por estas começou a ser questionado e estudado de tal modo que, atualmente, é uma questão humana com bastante importância ao nível das Nações Unidas.


Mas porquê? Porque é que este trabalho que é tão banal e intrínseco à vida em sociedade tem agora relevo na discussão feminista?


Pois porque de banal nada tem. Este trabalho invisível é o que faz o mundo funcionar, as famílias e as comunidades com ele. Imaginemos um cenário em que as pessoas (mulheres na sua maioria, já sabemos) que tratam das suas crianças, dos seus pais idosos, que cozinham para a família, que lavam a roupa e que limpam a casa param o que estão a fazer. Foi exatamente o que aconteceu na Islândia, no dia 24 de outubro de 1975 - a longa sexta-feira - em que as salsichas esgotaram nos supermercados e os escritórios abarrotavam com crianças cheias de açúcar no organismo que funcionou como moeda de troca para se portarem bem. Isto porque as mulheres tiraram um dia de folga. E o que aconteceu? O caos substituiu a ordem a que a sociedade estava habituada à custa do trabalho invisível da mulher. É clara, pois, a essencialidade deste trabalho. Tratando-se, portanto, de um dos motores do mundo, encaremos este assunto de frente e com a seriedade que exige.


@SIC Notícias


O projeto “O valor do trabalho não pago de mulheres e homens - trabalho de cuidado e tarefas domésticas” desenvolvido por uma equipa de investigação do CESIS (Centro de Estudos para a Intervenção Social) tem como um dos objetivos a monetarização destas formas de trabalho com o intuito de lhe dar valor. Foi-lhes possível estimar que este trabalho poderá representar entre 40 mil milhões e 78 mil milhões de euros para a economia portuguesa, dependendo da abordagem metodológica, e que as mulheres asseguram mais de dois terços desse valor monetário total. Ora, a valorização monetária de tal trabalho levaria a um incremento significativo do PIB nacional, entre um mínimo de 18.6% e um máximo de 36% do seu valor. Ou seja, de insignificante este trabalho nada tem. Importa olhar para estes números e estas propostas e pensar na realidade portuguesa no que toca ao cuidado de pessoas mais velhas. Atualmente, as necessidades de cuidado da população idosa representam cerca de 35% de todo o trabalho de cuidado necessário em Portugal, valor que poderá subir para 41% já em 2030 e para 51.4% em 2050, já que não é surpresa nenhuma que a nossa população esteja a envelhecer.


Olhemos então para esta divisão do trabalho com uma perspetiva de género. Já sabemos que as mulheres são as que se encarregam em maior número deste trabalho, mas apresento factos para o comprovar. Antes do confinamento causado pela Covid-19, a nível europeu, as mulheres gastavam 15.8 horas por semana a cozinhar e em tarefas domésticas, enquanto que os homens gastavam 6.8 horas. Durante os confinamentos estas horas aumentaram: 18.4 para as mulheres e 12.1 para os homens. De um modo muito simples, trata-se de um segundo trabalho depois das 17 horas da tarde. Um segundo trabalho que tem implicações na saúde, na disposição e claro no trabalho remunerado (para quem o tem), que na maioria das vezes, não tem as condições que deveria ter para que as pessoas cuidadoras e encarregues de tarefas domésticas pudessem trabalhar sem preocupações alheias. Alguns bons exemplos de empresas a travar essa tendência do favorecimento masculino à custa do trabalho da mulher são a Campbell Soup que oferece aulas em regime pós-escolar e programas de verão aos filhos dos trabalhadores; a Google que oferece creches subsidiadas e lavandarias à volta das suas instalações, para que os seus empregados possam tratar de tarefas simples como lavar a roupa durante a jornada de trabalho; e a Sony Ericsson e a Evernote que vão mais longe e oferecem serviços de limpeza nas casas dos seus trabalhadores. Vemos, pois, que trabalhar tendo em vista um futuro mais igual e justo nesta questão do trabalho doméstico não é impossível, até é bastante simples.

Esta questão vai bastante além da simples divisão de tarefas dentro de casa, relacionando-se, por exemplo, com as licenças de maternidade e paternidade e o que cada país oferece neste âmbito. A Suécia, por exemplo, tem uma das políticas de licença paterna mais generosas do mundo: três meses exclusivamente para o pai, que não podem ser transferidos para a mulher, ou seja, ou o pai utiliza esse tempo ou o casal perde-o. Não é surpresa que políticas deste género tenham benefícios, visto que está provado que os homens que usufruem de uma licença de paternidade tendem a participar mais nos cuidados futuros com os filhos.


Na falta de mais espaço para elaborar sobre este assunto, aconselho a quem tenha interesse a leitura do livro “Mulheres Invisíveis” de Caroline Criado Perez, um dos muitos livros acerca da temática que têm a proeza de simplificar e demonstrar através de factos o porquê da luta feminista. Como o expressa bastante bem Jeanette Winterson na contracapa do livro “Leiam este livro e digam-me depois se o patriarcado é apenas produto da minha imaginação.”


Por um futuro sem obrigações silenciosas, sem inevitabilidades em razão do género e com políticas públicas eficazes e inovadoras tendo em vista atingir a belíssima igualdade.



Inês Gomes Barbosa

Departamento Fazer Pensar



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