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O trabalho infantil no século XXI: uma realidade que perdura

  • Foto do escritor: Inês Barbosa
    Inês Barbosa
  • 4 de mai. de 2023
  • 4 min de leitura

Olho em volta e vejo a Inteligência Artificial a avançar, vejo pessoas no espaço, vejo a riqueza dos ricos a aumentar, vejo carros a andar sem condutor. Mas olho em volta, novamente, para o mesmo mundo e vejo pessoas que morrem de fome e crianças obrigadas a trabalhar. Esta dualidade perversa deixa-me, por vezes, muito mais revoltada do que feliz pelos (ditos) avanços civilizacionais. Isto porque tenho uma certa dificuldade em conceber tantos “avanços” num mundo onde a água ainda não chega a todos e onde crianças vão dormir com fome (e não tão longe de Portugal como muitos podem pensar).


@DANIEL BECERRIL / REUTERS

Ora, neste artigo, debruço-me sobre o trabalho infantil e a sua especial crueldade num tempo maravilhado de “avanços”.


A Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de novembro de 1989 e protege, de variadas formas, a criança: desde a sua identidade à sua vida privada passando pela proteção contra maus tratos e negligência. Temos, portanto, previsão jurídica.


O relatório Child Labour: global estimates 2020, trends and the road forward realizado em conjunto entre a Organização Internacional do Trabalho e a Unicef dá-nos a conhecer uma realidade bem diferente da que sonhamos enquanto comunidade e que vai em tudo contra a Convenção há pouco mencionada. O número de crianças envolvidas em trabalho infantil subiu para 160 milhões, verificando-se, portanto, um aumento de 8,4 milhões nos últimos 4 anos. A evolução da erradicação do trabalho infantil inverteu o seu sentido pela primeira vez em 20 anos e quebrou, portanto, a tendência de queda que havia sido registada entre 2000 e 2016, um periodo em que assistimos a um decréscimo de trabalhadores infantis na ordem dos 94 milhões. O relatório enfatiza ainda que o número de crianças com idades entre 5 e 17 anos, envolvidas em trabalhos perigosos aumentou 6,5 milhões desde 2016, atingindo os 79 milhões de crianças. São números que definitivamente assustam.


@KUNI TAKAHASHI / NYT

Algumas das conclusões do relatório são:

  • 70% dos casos de trabalho infantil ocorrem no setor agrícola, seguido por 20% no setor de serviços e 10% no setor industrial;

  • Quase 28% das crianças entre os 5 e os 11 anos e 35% das crianças entre os 12 e os 14 anos que trabalham não frequentam a escola;

  • O trabalho infantil é mais predominante entre rapazes, em comparação com raparigas, independentemente da idade;

  • O trabalho infantil, nas áreas rurais, é quase 3 vezes superior quando comparado com as áreas urbanas.


Perante tudo isto, quanta foi a minha surpresa (pouca, na verdade) quando li, à pressa, um título de uma notícia que dizia algo como “Os EUA querem normalizar o trabalho infantil”. Os EUA? Aquela grande potência mundial? O palco de tantos avanços tecnológicos? Como é possível? Depois descobri algo que realmente me deixou muito surpreendida: os EUA são o único país que não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança.


Mas, então, qual é a realidade do trabalho infantil nos EUA? De acordo com as leis americanas, os menores podem trabalhar a partir dos 14 anos, com um número limitado de horas para aqueles que têm menos de 16 anos, e é proibido o trabalho em atividades e setores perigosos. Este limite de horas não se aplica ao trabalho agrícola, em quintas, desde que a criança não falte à escola. Não compreendo esta falta de proteção no que toca a este tipo de trabalho, muitas vezes duro e esgotante. Desde 2018, o número de menores a trabalhar de forma ilegal subiu 69%. Importa referir que estamos a falar, na sua maioria, de crianças migrantes e sem apoio familiar, que se encontram muitas vezes sozinhas nos EUA. Esta vulnerabilidade que estes jovens e crianças enfrentam deveria ser mais um motivo para uma proteção eficaz e duradoura. Mas não o é.


As últimas novidades sobre o assunto reportam às quatro gigantes da indústria do processamento de carne - JBS Foods, Tyson Foods, Cargill e Marfrig. No penúltimo ano fiscal estas empresas declararam um lucro combinado recorde de quase 15 mil milhões de dólares. Fixem bem este número. Perante a escassez de mão de obra que estas empresas enfrentam, qual seria a solução óbvia? Melhorar as condições de trabalho e aumentar salários de modo a que os trabalhadores se interessem pelas vagas e se mantenham na empresa a longo prazo. Qual foi a solução adotada? Investir em mão de obra infantil, sujeita a ordenados de miséria, à falta de outra palavra melhor. O governo dos EUA já afirmou, em fevereiro, que vai reforçar a luta contra o trabalho infantil. Diria que um bom primeiro passo seria a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança, visto que penso ficar um pouco mal, de mau tom, ser o único país a ficar de fora. O departamento do trabalho afirma que vai inspecionar de forma mais aplicada a aplicação da lei de forma a combater o trabalho infantil ilegal. Já a Human Rights Watch salienta que a não ser que haja mudanças nas leis e regulamentos dos EUA, a fiscalização adicional não será suficiente. A organização defende, portanto, que o Congresso deve aprovar urgentemente uma legislação de modo a anular as lacunas que existem na legislação dos EUA e que o Departamento do Trabalho deve atualizar as regulamentações sobre trabalho perigoso na agricultura.


No fundo, e em modo de conclusão, penso que estamos todos de acordo quando afirmo que o lugar da criança é a brincar e o do jovem é a descobrir. Como deu para compreender com o artigo, essa não é a realidade de muitas (demasiadas) crianças. Nem num país dito desenvolvido como são os EUA, a desgraça da pobreza infantil, que leva à necessidade do trabalho, está a salvo. Com a vontade política de melhorar as realidades mais difíceis seria possível uma reviravolta em tantas áreas tão importantes. Mas, de facto, a verdade é que este ingrediente (o mais importante) falta em quase todo o lado para quase todos os assuntos. Mas como é costume dizer: a esperança é a última a morrer!


Inês Gomes Barbosa

Departamento Fazer Pensar


 
 
 

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