I – O venire contra factum proprium é uma das manifestações do abuso de direito e obsta a que alguém aja de forma contrária a actos anteriores que geraram uma situação objectiva de confiança na contraparte.
II – Consubstancia uma situação objectiva de confiança a liderança de um vasto apoio financeiro e militar concertado aos esforços de guerra de um Estado aliado, acompanhada de uma recusa em encetar processo negocial com o beligerante adversário, inclusive, lançando mão de numerosas sanções económicas contra este.
III – Representa uma quebra nessa confiança o começo de negociações de paz com o estado oponente sem o estado aliado, a recusa em continuar a advogar pela manutenção das fronteiras pré-guerra, a exigência de contra-prestação em forma de recursos geológicos, pelo apoio que prestava de livre vontade até então, e a responsabilização do aliado pelo perdurar do conflicto armado.
O instituto jus-civilístico que traduz uma mudança injustificada de comportamento susceptível de ferir a confiança da contraparte (1) parece ser apto a descrever a nova postura dos EUA quanto à guerra no Leste Europeu, que põe em causa as garantias de apoio a Kiev prestado pelo eixo do Atlântico Norte, até aqui liderado por Washington. Com efeito, foi com base em tais garantias que Kiev se lançou no empreendimento de se manter em guerra contra o gigante da Eurásia.
O virar de página da política externa americana relativamente à guerra na Ucrânia motivou um grande abalo nas relações internacionais nas últimas semanas, mais concretamente pela postura adoptada pelas delegações dos EUA na Conferência de Segurança de Munique e na postura dialogal assumida em Riyadh com a Rússia para pôr termo ao conflicto.
Todavia, não será preciso qualificar a postura trumpista como uma surpresa, já que a campanha presidencial do novo inquilino da Casa Branca havia prometido terminar rapidamente com a guerra e denunciado a extensão dos apoios militares e financeiros ao esforço bélico de Kiev.
Sublinhe-se, de qualquer das formas, que se trata de uma ruptura com a política levada a cabo por Biden, que encabeçou uma aliança de quase 50 nações que tem vindo a prestar auxílio monetário e militar à defesa ucraniana e a impor sucessivas sanções económicas à Rússia, num esforço para isolar Putin no mapa político. Esta pretensão de liderar aquilo a que Biden apelida como o “mundo livre” e a “defesa da democracia” assentavam na defesa inequívoca da integridade do território ucraniano, na derrota militar da Rússia, no reforço do investimento em armamento pelos aliados e na futura integração da Ucrânia na NATO, pugnando por uma aliança mais estreita no bloco político-militar.
Quanto ao governo de Zelensky, este era classificado como o símbolo da democracia e reconhecida a sua liderança em tempos de guerra, havendo, inclusive, uma imagem positiva das medidas políticas tomadas, como a imposição da lei marcial e a subsequente suspensão de eleições, assim como a suspensão da actividade de partidos designados como “pró-russos”.
A administração Trump veio inverter esta lógica, desenterrando o diálogo com o governo de Putin e condenando as passadas posturas americana e ucraniana [1] [2] perante a guerra. O começo de conversações de paz em solo saudita entre as comitivas americanas e russas, que excluem a Ucrânia e a UE, configuram-se como uma espécie de demonstração de força da renovação de Washington. A postura tem vindo a ser criticada por Zelensky e alguns dos aliados europeus, que exigem ter lugar na mesa das negociações. O presidente ucraniano afirma não aceitar quaisquer desfechos destes encontros, pela ausência do convite à sua participação.
O cepticismo de Trump quanto à NATO e a sua desconsideração como um trunfo internacional são também um temas controversos, levando a que fosse exigido um brutal aumento do investimento dos países europeus na defesa, mais que duplicando a proposta da década anterior, passando de 2% para 5% do PIB. O presidente americano afirmou ainda que o respeito dos EUA pelo artigo 5º do Tratado (2) dependerá da observância deste investimento, recusando-se a prestar auxílio militar, em caso de agressão aos países que não o cumpram. Além disso, Trump pugna agora pela iniciativa europeia no auxílio à Ucrânia, descolando-se da anterior orientação de liderança assumida pela administração Biden.
Para trás parece ter sido deixada a pretensão de assegurar as fronteiras ucranianas antes de Fevereiro de 2022, nomeadamente no que diz respeito aos disputados territórios (até então) ucranianos do Donbass, entretanto ocupados pela Rússia. Esta área geográfica, composta por população maioritariamente russófona, foi alvo de uma guerra civil durante 8 anos entre forças estaduais ucranianas, no seio das quais fora integrado o polémico Batalhão Azov, e rebeldes próximos do Kremlin. Acrescente-se que além da recuperação destes territórios, apoiada pela anterior administração americana, o presidente ucraniano tinha ainda o objectivo de reaver a soberania ucraniana da Crimeia, que foi tomada pelas forças do russas em 2014, aquando do golpe de Estado na Praça Maidan.
O governo de Trump adoptou, ainda, uma perspectiva comercial e recíproca da ajuda externa prestada a Kiev, exigindo frontalmente contrapartidas económicas pelo apoio que tem vindo a ser dado. Destaca-se, neste contexto, a pressão para a chegada a um acordo quanto a metade do direito à exploração das reservas daquilo a que chama de “minerais raros” ucranianos que Mike Waltz, conselheiro de segurança norte-americano, diz representar uma cooperação económica valiosa para a Ucrânia. Em resposta, Zelensky afirmou que não podia aceitar tal proposta, por considerar que o país não está à venda. Fontes internacionais afirmam que houve, inclusive, uma ameaça de desconexão da Ucrânia à rede de internet via satélite Starlink, pertencente a Elon Musk, o que representaria uma perda significativa de transmissões militares.
Crítico da lei marcial e da actuação do governo de Kiev, Trump chamou o presidente ucraniano de “ditador”, defendendo que este se escuda na lei marcial para não convocar eleições, apesar da sua alegada taxa de aprovação de 4%. Ademais, acusou o aliado de ser responsável pela guerra e de não querer a paz, já que, segundo Trump, este recusou-se a negociar com a Rússia — postura que, todavia, Biden tinha igualmente assumido. Em resposta, Zelensky afirmou que o republicano vive numa “bolha de desinformação russa”, lamentando a tomada de posição.
O aparente fechar de um capítulo diplomático e da estreita colaboração EUA-UE, face à postura adversarial quanto à Rússia, não parece, ainda assim, desafiar o conceito de que o núcleo decisório quanto a este conflicto está sediado no outro lado do Atlântico, pese embora ser dado ênfase a uma outra estratégia para as relações externas, revivalista do “Peace Through Strength” (3).
(1) Sem prejuízo do presente artigo se assemelhar à sebenta de Teoria Geral de Direito Civil, caberá o seguinte esclarecimento:
Construída a partir da cláusula geral da boa fé e ancorada na tutela geral da confiança do tráfego jurídico, o “venire contra factum proprium” é uma modalidade do abuso de direito, previsto no artigo 334º do CC. Trata-se de uma espécie de válvula de segurança do Direito Civil que veda o exercício de direitos quando a aplicação do direito estricto não oferece uma solução justa do caso. A doutrina (1A) densifica esta excepcionalidade, impondo-lhe diversos requisitos:
1- Situação de confiança, fundada na boa-fé subjectiva daquele que acredita naquela conduta (o factum proprium da contraparte), observando os deveres de cuidado;
2- Uma justificação para essa confiança, assente na razoabilidade da expectativa que essa mesma conduta perdure no tempo;
3 – Investimento na confiança, desenvolvendo o confiante a sua actividade com base no factum proprium (fazendo com que a conduta contradictória que destrua essa actividade, o venire, se traduza numa situação de injustiça);
4- Imputação da confiança à contraparte, de modo a que a confiança no factum proprium lhe seja reconduzível;
(2) “Artigo 5.º do Tratado Atlântico Norte
As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte.Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque serão imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais.”
(3) O “Peace Through Strength” trata-se de uma estratégia política para lidar com ameaças militares, desenvolvida pelo governo de Ronald Reagan no contexto da Guerra Fria, face ao bloco soviético. Trata-se do ênfase no grande investimento em equipamento e tecnologia militar para dissuadir possíveis agressores, demonstrando que uma agressão teria como consequência uma retaliação em larga escala. Além disso, a pretensa superioridade bélica visava criar condições para que os EUA beneficiassem de uma posição folgada em processos negociais diplomáticos.
José Miguel Barbosa
Departamento Sociedade
(1A) Menezes Cordeiro, Revista Ordem dos Advogados 58º/pg. 964
O autor escreve com o anterior acordo ortográfico.
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