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Foto do escritorJosé Pedro Carvalho

O Vinil do Hollywood: do Físico ao Digital

A Imagem em Movimento sempre foi uma arte direcionada às massas, talvez por causa dos exorbitantes custos de produção a colmatar, quiçá porque a barreira que extravasa e que deixa transpirar é algo que, em definitivo, nenhum outro avanço humano poderá igualar. Trata-se de experienciar um expoente do Real apenas permitido pela lente da câmara e de quem lhe dá corpo e mente.


O Cinema não só nos informa sobre o Outro, como nos leva a lugares previamente por alcançar no nosso ser. Um efémero deslumbre apenas sustentado pela Memória do espectador, sem qualquer direta materialidade de apoio, a não ser as pessoas e os sítios onde experienciamos tais eventos.


Figura 1. "Uma amostra de Home Cinema", Peter Falk em Columbo (1968-2003)

@AmazonPrime


E durante muito tempo assim foi: não havia forma sucedânea alguma, economicamente acessível, de nos agarrarmos a esse passageiro acontecimento, para além da acidental repetição nos locais do costume. Porém, tudo isso havia de mudar, em meados da década de 70, com a introdução das videocassetes, id est, em formato VHS - Video Home System - ou Betamax.


O suporte físico de filmes revolucionou completamente a indústria. Permitiu dar uma longevidade económica e uma contínua relevância sociocultural, nunca sonhados pelos “drive-ins” da época, ao enorme catálogo de propriedade intelectual que os estúdios açambarcaram.


Figura 2. "O lendário estatuto dos extras de LOTR", Alexis Bledel e Lauren Graham em Gilmore Girls (2000-2007)

@Netflix


Esse meio foi evoluindo ao longo das décadas, notavelmente, com o advento do disco digital, o DVD - Digital Video Disc -, no final do séc. XX, que transfigurou completamente o valor acrescentado do produto, passando a incluir extras, desde documentários de produção, “behind the scenes”, “gag reels”, aos “director´s commentary”, que, em bom rigor, se começaram a disponibilizar ainda em disco analógico, o Laserdisc.


Claro que os desenvolvimentos não pararam por aqui e com a fervorosa ânsia por “high-definition video” saiu o Blu-ray, um formato vastamente superior ao DVD. Porém, o salto qualitativo não seria comparável ao do abandono do VHS. E muitos menos se aproxima dessas comparações o “crème de la crème” atual, o 4K UHD Blu-ray; um evidente caso de rendimentos decrescentes.


Atualmente, as vendas de suporte físicos, nos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, fragmentam-se, aproximadamente, em dois terços do total em DVD, um quarto em Blu-ray, e o restante em 4K UHD. Isto, pois, não só o custo de entrada aumenta com os formatos superiores, como, para o fabricante, as margens do DVD continuam a ser imbatíveis.


Figura 3. "Terminator 2 em Laserdisc, VHS, DVD e Blu-ray", Fotografia de Linus Tech Tips, disponível no YouTube

@YouTube

Os estúdios giravam à volta deste modelo de negócio, incluindo sempre nas projeções financeiras de um filme a sua receita em “physical media”. Percebiam a importância desses talismãs na vida das pessoas. O filme tornou-se tangível, um objeto a ser guardado e apreciado, de livre uso do proprietário do disco.

Ora, a próxima inovação disruptiva havia de ser os “direct-to-consumer business models”, tornando-se o “streaming” a prioridade para o executivo corporativo.


A priori, nada indica, racionalmente, que isto pudesse ter algum impacto negativo neste mercado. Faria sentido que se pusessem vários ovos em diferentes cestos - o consumidor gosta de escolha, principalmente, quando o suporte físico é inegavelmente o produto tecnicamente superior. Mas há um fator decisivo a equacionar: o custo gigantesco que é sustentar um negócio de streaming. Sim, os lucros que os modelos de subscrição oferecem são, in limine, estranhos a estas corporações cotadas em bolsa; mas para ter sequer a pretensão de lá chegar é necessário suportar muito prejuízo, o que apenas se torna possível se se eliminar todo o dispensável a esse objetivo.


O caso paradigmático disso mesmo são os “write-offs” que foram feitos nos últimos tempos por vários estúdios, que resultaram na eliminação de filmes do seu catálogo de streaming no futuro próximo; filmes esses que apenas se encontravam legalmente disponíveis em tais serviços, aliás, pensados de raiz para esse meio. O motivo para tal? Deduções fiscais para gerar fluxo de dinheiro, de forma a sustentar o titã que é o “video on-demand”.


Em Portugal, por exemplo, a Disney parou a distribuição de Blu-rays no segundo semestre de 2018, não obstante ter lançado um ano depois as mais variadíssimas edições do último Star Wars. Lá fora, na Austrália, a distribuição parou mesmo este ano. Há muito que os grandes estúdios não têm uma estratégia de distribuição de média física cá. O máximo que se pode fazer é, ou comprar novo em lojas estrangeiras, nomeadamente, espanholas, onde muitas vezes o produto virá sem legendas em português (algo que, honestamente, não se entende com a existência do mercado único da União Europeia), ou comprar no extenso mercado de segunda-mão, que fica deveras agradecido pela falta de concorrência.

Figura 4. A fantástica edição da trilogia “Before” de Richard Linklater pela Criterion Collection

@YouTube


Uma tendência a registar é que apesar da janela de atenção para o formato físico por parte dos estúdios estar a esmorecer rapidamente, pelo menos, nos EUA, está a florescer o mercado de “boutique labels”: empresas dedicadas ao fabrico próprio das edições físicas de filmes. A renomeada Criterion Collection, que poderão conhecer da rubrica “Closet Picks”, encontra-se acompanhada pela Studio Canal, Arrow Films, Janus Films e muitas outras que, estimulando um forte apego à identidade das suas marcas, fazem as delícias dos cinéfilos, criando verdadeiras edições de colecionador que muitas vezes consubstanciam na derradeira apresentação do filme, em termos técnicos e artísticos, algo aliás incipiente ao suporte físico. Gosto de pensar que, em Portugal, temos uma espécie desse mesmo género, nomeadamente com a Leopardo Filmes ou a Midas Filmes.

Olhando ao custo mensal total do streaming para o ávido consumidor, à data de 6/10/2023, e tendo em conta os planos mais baratos, seria de 29,96 euros, contando com Netflix, HBO Max, Amazon Prime e Disney+, o que sempre fica abaixo da oferta das operadoras de telecomunicação, mas não por muito. E se é certo que o preço tem vindo a aumentar, nada indica que pare. Na verdade, a tendência é mesmo crescente. E a ironia é que o consumidor, segundo os dados de novembro de 2022 da HBO Max e de um rápido reparo do “Chief Executive Officer” da sua empresa-mãe, 60% do catálogo desse serviço simplesmente não visiona. Isto é mais assustador do que parece, porque o subscritor não só está assoberbado de escolha, como muito provavelmente nem sequer sabe, nem poderia saber, da plenitude da filmografia presente no éter digital.


A consequência disto tudo, e voltando ao início, é que não se cria uma relação a longo-prazo com a arte do cinema, com o deslumbre que nos fica na Memória. É tudo posto no curto-prazo e com a afiliação que temos com certa marca. A Memória torna-se intangível e, no final, é a Cultura em si que sofre.


A acrescer a isso, no físico é preservada pelo próprio espectador aquela específica edição do filme, inalterada em princípio, fiel à intenção do autor, seja ela qual for, algo que já não poderá ser dito das versões presentes em serviços digitais; o que, independentemente da valoração a fazer no caso concreto a estas situações, relembra o contexto político-social da época.


E em relação à já aludida retirada de conteúdos do digital, de certa forma, trata-se de uma situação equiparável ao “out-of-print” que sempre comungou com o suporte físico; no entanto, com um substrato drasticamente diferente, já que apesar do distribuidor já não ter a licença de distribuição, o proprietário do disco poderá sempre ver a cópia e, inclusive, revender o disco, pois não existe nenhuma licença que o detentor de direitos de autor e o fornecedor de serviço possam revogar a todo o tempo que afete o visionamento do filme.

Todavia, a obra nascendo, o Homem sonha e, eventualmente, conseguirá obter uma cópia de “ajudantes”, que se fartam de vender lá fora o seu produto abaixo da média pelo mero facto de ser em formato físico e o consumidor desejar propriedade. Veja-se sítios como o Facebook Marketplace, o eBay ou o Etsy, repletos de produto clandestino às centenas por artigo.

Figura 5. Material Promocional da Galp


A verdade é que independentemente da vontade dos estúdios e da atual galinha dos ovos d´oiro, mesmo com todos os obstáculos já mencionados e os não mencionados, como as janelas de lançamento de títulos díspares entre digital e físico (que só fragmentam o mercado, já agora), as notícias da morte do suporte físico de filmes têm sido consideravelmente exageradas. Esta é ainda uma tecnologia muito acariciada por colecionadores e, acima de tudo, reconhecida pelas massas, não tivesse contribuído fortemente para a democratização do Cinema quando, por exemplo, se podia comprar clássicos contemporâneos no caminho para encher o depósito do carro.


Podia-se aprender com as outras indústrias… O vinil nunca saiu do zeitgeist musical. A sua reinsurgência tem sido fomentada por edições especialíssimas e uma forte contribuição de artistas pop, como a Taylor Swift, que vendeu mais de meio milhão de cópias do álbum “Midnights” nos seus primeiros sete dias. O livro nunca morreu, apesar do sensacionalismo à volta do e-reader. Creio que seja mais frutuoso manter as Memórias perto do coração das pessoas do que somente fomentar uma nova barreira de engenho nosso, que apesar de extravasar o físico, não deixa permeabilidade alguma para nos debatermos com o desconhecido pelo algoritmo e pelos seus fins.


José Pedro Carvalho

Departamento Cultural

Webgrafia:





https://www.criterion.com/boxsets/1237-the-before-trilogy


https://youtu.be/z9XWN7u8mSU?si=vWhY_nGugqOcWWHL




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