Há qualquer coisa de diferente e, simultaneamente, de misterioso na relação entre pai e filho. Há qualquer coisa que me interessa e que me fascina nesta ligação que, por não partir de uma escolha, antes de um acaso, ser tão nuclear e fundamental nas nossas vidas. É quase como uma marca ou, se quiserem, uma cicatriz que nos acompanha ao longo da vida. A presença e a ausência, o amor e o desamor, a compreensão e a incompreensão, a capacidade ou incapacidade de expressar esse amor. Afinal, o que é isto de ser pai/mãe? O que é isto de ser filho? Não procuro com este texto responder a estas perguntas, mas, antes, levar à reflexão e, sobretudo, olhar para estas relações, por vezes destrutivas, mas onde, e apesar disso, convive um profundo amor que, por vezes, não se consegue expressar. E é através do cinema e da literatura que o vou fazer. Afinal, para que serve a arte se não para nos interrogar, abalar as nossas certezas e convicções, e continuar permanentemente nessa procura sempre inacabada de nos entendermos a nós e aos outros?
E começo com “Mal Viver", dirigido por João Canijo, recentemente premiado no festival de cinema de Berlim. Tudo se passa num pequeno hotel balnear, no norte do país, gerido por uma família de mulheres. Os homens ou foram embora ou morreram, ou ambas as coisas. Canijo, com este filme vai esmiuçar as relações entre estas mulheres, principalmente a relação entre uma mãe e uma filha, entre Piedade e Salomé, interpretadas brilhantemente por Anabela Moreira e Madalena Almeida. Também será muitíssimo relevante destacar aqui Rita Blanco, que interpreta Sara, a mãe de Piedade e que acaba por ser o catalisador destas relações destrutivas. “Mal Viver” nasceu sob referências de Strindberg e Bergman, mais precisamente a “Sonata de Outono”, e isso é notório, quer pela narrativa, quer pelas escolhas visuais.
Salomé, recém-chegada ao hotel, na sequência da morte do pai, volta a estar com a mãe e com a avó, e é sobre as relações que se estabelecem entre as três que o filme se vai desenrolar. É, acima de tudo, um retrato dos laços parentais no feminino e, tal como Canijo explica, “as mães, por muito bem que tentem fazer, acabam sempre por asfixiar os filhos, e mais ainda as filhas. As avós dão cabo da vida das filhas e as filhas acabam por dar cabo da vida das netas, num ciclo imparável”. Uma mãe aparentemente seca de afetos que não consegue ser a mãe que a filha tanto busca. Será o amor dela condicional em relação à filha por oposição ao amor incondicional de que falava o “Sangue do meu Sangue” do mesmo realizador? Não me parece, a ansiedade e a vontade de ter tudo sob controlo é o que a impede de amar a filha de forma natural, não conseguindo, por isso, expressar o amor que sente por ela. Tem tanto medo da vida e sente tanta responsabilidade por ser mãe que nunca soube transmitir amor à filha de modo a que ela se sentisse amada. Afinal, não é isso que queremos todos?
A cena que mais me tocou talvez tenha sido quando, a determinada altura, Salomé pede para dormir com a mãe. Piedade aceita, mas não consegue, porque a filha dorme com um olho aberto e ela não sente ternura, só medo. É aí que Piedade, sem conseguir ser mãe, volta a ser filha e vai dormir para o quarto de Sara, que a rejeita. Uma mãe a tentar ser mãe, não conseguindo, uma avó a negar ser mãe e uma filha no meio de tudo isto querendo apenas ser amada. Todas desamparadas e condenadas a uma teia de sentimentos destrutiva para as três.
Comecei com o cinema e parto, agora, para um livro — “Memória de Elefante” — e para uma crónica — “Janjão” —, ambos textos de António Lobo Antunes. Ambos autobiográficos e absolutamente reveladores desta relação entre pais e filhos, sobre a qual me tenho debruçado. No primeiro caso, da relação com a mãe e, no segundo, com o pai. Em ambos, aborda esta dificuldade em crescer no seio de uma família algo conservadora, sabendo desde cedo que a escrita e a literatura fariam inevitavelmente parte da sua vida. Um caminho por vezes tortuoso, mas onde, a pouco e pouco, foi afirmando a sua liberdade de ser e de criar, únicas num autor como Lobo Antunes que atingiu o mais alto patamar na literatura mundial.
Deixem-me aqui transcrever um excerto da “Memória de Elefante”, que acredito fazer uma excelente ponte com o “Mal Viver” e que se centra nestes laços familiares mãe/filha e que descreve tão bem aquilo que é a realidade que o filme apresenta: “Herdei talvez de ti o gosto do silêncio, e as sucessivas barrigas não te consentirem o espaço de me amares como eu necessitava, como eu queria, até que ao darmos pela existência frente a frente um do outro, tu minha mãe e eu teu filho, era tarde demais para o que, na minha forma de sentir, não tinha havido”.
Na crónica, a certa altura, diz-se que “a vida é um tribunal inesperado e o julgamento do pai pelo filho um ato impiedoso e terrível, encarando-o num ressentimento acusador”. E é isso que faz em ambos os textos: um julgamento por vezes impiedoso, mas, ao mesmo tempo, de uma ternura comovente onde, apesar de todas as incompreensões, é evidente o amor que unia aquelas relações — “bato à porta da sua sala, onde estava sempre sentado, com uma prancheta nos joelhos, e digo-lhe a sorrir Olá pai antes de roçar a bochecha na sua (nunca nos beijámos a sério) e ocupar o divã para falar consigo”. Esta relação com o pai, que descreve como distante, sob uma fachada de rigidez e intransigência, é agora vista por Lobo Antunes de outra maneira quando descobre as cartas que o seu avô mandava ao seu pai enquanto estava na guerra em França. E passa a olhar para o pai de outra forma, descobre uma “ternura contida mas óbvia” que nunca sentiu e que agora encontra. Talvez percebamos melhor, também nós, os nossos pais que tantas vezes julgamos sem os compreendermos nas suas fra(n)quezas e falhas.
E, por fim, o que fica quando os perdemos, o que resta depois dessa ausência que é a morte? Tal como no filme “As três filhas” (“His Three Daughters”), onde vemos que é no ressentimento, na raiva e no medo que a dor encontra forma de se expressar. Três irmãs com diferentes formas de lidar com o sofrimento. Três irmãs que, apesar disso, se unem na dor. É, sobretudo, um filme que capta as feridas de uma família e as cura. Tal como em “Mal Viver”, onde vemos as feridas de uma família, tal como em Lobo Antunes, que encontrou forma de curar essas feridas e de atingir uma espécie de serenidade. Para terminar, só me vem à memória uma frase que a determinada altura se diz em “Mal Viver”: “os pais ficam nos filhos, é como se eles nunca morressem”. E é tão verdade para todos nós.
Vicente Correia
Departamento Cultural
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