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  • Foto do escritorJornal Tribuna

Pela Roma de Mega Ferreira

Publicado pela primeira vez em 2003 e comprado pela minha mãe em 2012, como se lê no apontamento na primeira página, o livro “Roma – exercícios de reconhecimento” foi o grande companheiro na minha estada na urbs aeterna. António Mega Ferreira (1949-2022) é um apaixonado por Roma que, também na mais apaixonante forma, convida o leitor a descobrir os cantos, mais ou menos conhecidos da cidade. Como o próprio esclarece, este livro "não é guia turístico nem roteiro de viagem", é, sim, a proposta de um conjunto de "exercícios de reconhecimento", isto é, de estabelecimento de relações mentais partindo do plano visível e materializável, da arte e arquitetura para o plano da literatura, da história e até dos sentidos.

 

O percurso pela Roma de António Mega Ferreira começa no que o próprio define como sendo o "seu" centro de Roma – concepção subjetiva, espiritual e afetiva mais do que geográfica ou urbanística. Será a Piazza della Rotonda e o Panteão- "onde o rasto glorioso de Adriano se cruza com a sombra luminosa de Rafael".

 



 

Depois de seis meses na più bella città del mondo proponho daqui dois percursos, depois da imprescindível entrada no Panteão: virar à esquerda e ir até ao Obelisco do Elefante de Bernini e entrar na maravilhosa Santa Maria sopra Minerva (com os frescos de Lippi); depois, regressando à Piazza della Rotonda como ponto de partida, virar à esquerda pela Via Giustiniani até chegar à Piazza San Luigi dei Francesi.



 

Estamos numa das “zonas francesas” de Roma: para além da Embaixada Francesa e de um instituto de língua francesa, vale a pena entrar na livraria Stendhal, que conta com uma enorme seleção de livros em francês e italiano. O ponto alto deste passeio será, no entanto, a visita à igreja de São Luís dos Franceses. Entrando pela porta da esquerda e seguindo (a multidão) por esta nave lateral até chegar à última capela: ecco a capela Contarelli. Adquirida em 1565 pelo cardeal Matteo Contarelli, que havia deixado instruções pormenorizadas a Giuseppe Cesari para a decoração das paredes laterais e do teto a fresco, a capela acaba por ser decorada com três telas do lombardino Michelangelo Merisi da Caravaggio. Afinal, até 1599, Cesari concluíra apenas a decoração do teto e 1600 era ano de Jubileu. Michelangelo Merisi, contratado em julho de 1599, tinha então cinco meses para pintar duas telas que deviam representar a designação de Mateus como discípulo de Jesus e o seu martírio. Há que esperar que algum guia de um grande e barulhento grupo de turistas coloque a moedinha na caixa que faz com que as luzes da capela se acendam, e consigamos observar as obras no seu maior esplendor. 



À direita do observador, o martírio de São Mateus: Mega Ferreira fala-nos de uma “autêntica dessacralização do sagrado (…) uma subversiva sacralização da violência”. Identifico, nesta composição tumultuosa (confusa, de caos?), o contraste, tão inteligentemente explorado através do chiaroscuro, entre a santidade de São Mateus na serenidade com que recebe do anjo a palma do martírio e a impiedade, pálida e fria, do assassino. Os espectadores quase nus, no canto inferior direito, parecem assistir tranquilamente à cena; impressiona, porém, o pathos dos restantes figurantes, que se comovem, espantam e fogem, entre eles o próprio Caravaggio, que aqui se autorrepresenta.

 



À esquerda do observador, a Vocação de São Mateus — um “personal favorite”. Não consigo, nem me parece de grande relevância, fazer grandes interpretações teológicas ou simbólicas da composição em causa: impressiona-me o jogo de luz, oriunda de Jesus e de São Pedro (adicionado posteriormente à composição) e que ilumina apenas os capazes de o reconhecer; a tensão de um instante capturado como que fotograficamente, mas também a expressividade de São Mateus, incrédulo (“proprio io?”) no momento do chamamento, e, dos que, indiferentes ao que acontece, contam dinheiro na mesa. Acima de tudo, impressiona-me o poder desta pintura que atrai, que chama, aqueles que por ela passam e são convocados a observar, a deixar-se absorver por este clímax da experiência estética.



A capela Contarelli, depois de narrada (mais do que descrita) por António Mega Ferreira, tornou-se o meu sítio preferido em Roma. Resume em si a excecionalidade da cidade, aquilo que faz dela a “cidade eterna”: Viver Roma, passear por Roma é experienciar a materialização da passagem do tempo, da construção da história e da nossa identidade coletiva. Como tão eloquentemente o coloca Mega Ferreira, “Nenhuma outra [cidade] se construiu em tão íntima sobreposição de heranças e testemunhos, pedras e memórias, mitos e crenças". 


Nos dois capolavori de Caravaggio encontramos a concretização desta perspetiva da História no plano da continuidade e da comunicação transtemporal, de uma cultura que bebe de si mesma. Vemo-lo, por exemplo, no diálogo imagético estabelecido por Caravaggio entre as figuras sentadas à mesa na sua Vocação e as figuras do fresco d’ A Punição de Aman, de Miguelângelo na Capela Sistina, entre a mão que aponta para Mateus e a mão na Criação de Adão, ou entre o figurante à esquerda do assassino que, no Martírio de São Mateus, estende as mãos no ar e a figura da Velata, das catacumbas de Priscilla, do século III.





 Seguimos o passeio, continuando pela Via della Scrofa até chegar à intersecção com a Piazza di Sant’Agostino e entramos na basílica homónima. Consagrada no ano de 1483, esta basílica, como a maioria das basílicas romanas, alberga uma porção generosa de obras de arte. António Mega Ferreira escolhe destacar duas: o Isaías de Rafael e a Madonna dei Pellegrini, de Caravaggio.


Sem este “exercício de reconhecimento” proposto pelo autor do livro, dificilmente prestaríamos a devida atenção ao Isaías de Rafael, de 1511, que está no terceiro pilar do lado esquerdo da nave da basílica. Mega Ferreira chama-nos a atenção para o joelho descoberto do Profeta, que o distingue das representações miguelangelescas no teto da Capela Sistina de 1508 a 1512, explica-nos então: “Deus e o Homem encontram-se em perfeito equilíbrio, forjado no processo de auto-reconhecimento do que há de humano na ideia de Deus. Quanto mais humano, mais o profeta de Rafael se aproxima de Deus, mais lhe ouve a palavra, melhor a transmite: «Abri as portas por onde há-de entrar o povo que crê.» O olhar do profeta dirige-se para baixo, compassivo e sereno (…) é aos homens que Isaías transmite a palavra de Deus; e, nesse gesto, tão atento ao humano, é de um Deus que não dorme nem descansa, que se inquieta e preocupa, um Deus omnipresente, que fala a sua pintura”.



À esquerda, na pequena capela Cavaletti, encontramos a segunda obra de que nos fala Mega Ferreira: a Madonna dei Pellegrini ou Madonna di Loreto. Uma vez mais, precisamos de colocar uma moedinha na caixa que acende as luzes (ou esperar que alguém o faça) para observarmos esta representação de uma aparição da Virgem com o Menino a dois peregrinos. A Virgem está descalça e surge junto de um nicho banal, parte de uma parede em ruínas, que poderia fazer parte de qualquer casa popular romana. Nela “palpita humanidade pura, residual, despida de qualquer transubstanciação divina”. Quase cem anos separam a humanidade na representação do joelho do profeta Isaías da humanidade dos pés descalços, sujos e calejados do peregrino, que tão grande escândalo terá gerado, e que marca o fim da representação idealizada do Homem. Também nos pés sujos do peregrino encontramos a representação do divino, in absentia. Diz-nos Mega Ferreira: “Deus já não está na pintura, porque em cem anos o homem se libertara da lenda da sua própria Criação (ou, se se quiser, da arrogância de se pretender divino)”.



O nosso passeio (e este texto) podia continuar atravessando o Tibre até à Villa Farnesina, com os seus maravilhosos frescos; ou até ao Quirinale, onde contrastam as igrejas de Sant’ Andrea al Quirinale, obra prima de Bernini, e San Carlino alle Quatro Fontane, de Borromini; ou, apanhando um comboio urbano, até à Villa Adriana em Tivoli. Sempre bem acompanhados por este livro, essencial em toda e qualquer visita a Roma, e na certeza de que nenhum grande texto, grande livro, grande passeio ou grande vida será suficientemente grande para abarcar em si todo o encanto de Roma, na sua eterna plenitude.

 

Ana Neri Moreira

Departamento Cultural

 

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