O processo eleitoral dos EUA, que muitas vezes decorre num período superior a um ano, é alvo de mediatismo por todo planeta. E seja no que toca às eleições preliminares primárias (dentro de cada um dos partidos), os debates entre os dois candidatos dos dois partidos com maior expressão eleitoral, ou o acto eleitoral em si é um acontecimento político em que milhões de pessoas seguem atentamente à eleição do dito “líder do mundo livre”.
Os Estados Unidos são muitas vezes apelidados como a “maior democracia do mundo”. Isto deve-se, em grande parte, à veemente reafirmação da sua posição hegemónica na política e economia internacional durante a Guerra Fria, nomeadamente no paradigma dos regimes demoliberais, e que se prolonga até aos dias de hoje. A Federação americana teve uma grande preponderância na criação e desenvolvimento de estruturas e organizações internacionais. Vale salientar, a título de exemplo: a ex-SDN (entretanto dissolvida e na qual, por deliberação dos parlamentares estadunidenses, não participaram); a ONU (cuja actual sede é situada em Nova Iorque); a elaboração do Plano Marshall (relativo à restruturação económica dos países afectados pela Segunda Guerra Mundial); o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (ambos sediados em Washington D.C. e criados no seguimento da conferência internacional de Bretton Woods); a NATO/OTAN (como um bloco político-militar criada com vista a proteger as nações capitalistas de eventuais ofensivas de países socialistas e diminuir a influência geopolítica destes, em contexto de Guerra Fria). Esta sua acção no plano do multilateralismo institucional tem servido, entre outros propósitos, para continuar a preponderância que a economia dos EUA tem a nível mundial, sendo a nação com o maior PIB anual do mundo (aquando de 2019: ~21,4 biliões$ ou ~2.14 × 1013$).
No entanto, internamente, os processos eleitorais representativos do país que muitos dizem ser o “farol da democracia ocidental” mostram ter incongruências com a maior parte das nações demoliberais. Assim, são o único regime deste tipo de democracia que ainda elege o seu chefe de Estado (que é simultaneamente o chefe de Governo, fruto do seu sistema presidencialista) por via de sufrágio indirecto. Isto quer dizer que, no acto eleitoral, o método utilizado, ao invés de contar directamente os votos colocados nas urnas (voto popular), possui uma fase intermédia com recurso a um órgão colegial eleitoral intermediário (Colégio Eleitoral) que, com base nos resultados eleitorais preliminares, só depois atribui o mandato ao candidato presidencial. Cada Estado federado tem a si atribuído, tendo em conta a proporção relativa a quantos mandatos preenchem, respectivamente, no órgão parlamentar bicameral (Câmara dos Representantes e o Senado, pese embora neste último a representação por Estado é igualitária, dois senadores por Estado), um número de mandatos no Colégio Eleitoral, muito díspares entre si. A quantidade de mandatos, em 2020, foi de 3, a mais baixa, (correspondente a Estados como o Alasca ou o Montana) até 55 (os quais pertencem à Califórnia). Nas “general elections” de Novembro de 2020, havia um total de 538 membros neste órgão divididos pelos 50 Estados que também, para efeitos eleitorais, se dividem em diferentes “electoral districts”.
Este sistema data do século XVIII (!), mais precisamente de 1787, aquando da elaboração da Constituição Federal Norte-Americana. Alguns autores apontam a razão de ser deste sistema ao facto de que, à data, o país apresentava-se extenso demais para albergar um sufrágio universal directo. De qualquer modo, passados mais de 200 anos, este método sufragista mantém-se essencialmente o mesmo.
Além do já referido sufrágio indirecto, em cada Estado existe um sistema “winner takes all”, ou seja, a candidatura que atingir a maioria dos votos (na maior parte dos casos, relativa) em dado Estado federado leva todos os seus Grandes Eleitores. Em termos prácticos, se um partido vencer na Califórnia, leva consigo todos os 55 mandatos do Colégio Eleitoral que, em 2020, foi o Partido Democrata com aproximadamente 11 milhões de votos. Ora, neste preciso ano, houve um total superior a 17 milhões de votantes participativos neste Estado, sendo que cerca de 6,3 milhões de eleitores californianos não tiveram qualquer expressão no órgão colegial eleitoral intermediário, já que todos os 55 Grandes Eleitores deste Estado foram atribuídos à candidatura Biden/Harris. Este processo é multiplicado por todos os Estados federados.
Uma das principais consequências deste sistema é a discrepância existente entre o voto popular e o voto colegial. Logo aqui é possível questionar a legitimidade da escolha do chefe de Estado estadunidense. Se a soberania deve estar assente no povo, não deverá ser a maioria a decidir quem melhor representa os seus interesses nas instituições democráticas? Vejamos que, em 2016, a candidatura de Donald Trump foi eleita tendo quase 3 milhões de votos a menos (!) do que a candidata Hillary Clinton, embora tenha obtido uma vitória com uma grande margem no Colégio Eleitoral (304-227). Em termos de comparação, no mesmo ano, nas eleições presidenciais portuguesas, houve um total de 4,7 milhões de votantes a participarem no acto eleitoral. Outro caso que ilustra bem o que aqui se pretende comprovar é relativo às eleições presidenciais estadunidenses de 1992, quando Ross Perot, o “terceiro candidato” das eleições entre as candidaturas de Clinton e Bush, obteve 19% do voto popular (correspondente a 19,7 milhões de votos) mas 0 representação no Colégio Eleitoral (!).
Quanto à representação, proporcional ou maioritária (como é o caso de países como os EUA), remetemo-nos a um problema clássico no ramo da ciência política, muito estudado por Maurice Duverger. Acrescentam a isto conceitos relacionados com a “(in)utilidade do voto” e a forma organizativa político-partidária enraizada e consolidada no Sistema de Governo de cada Estado, contribuindo para maiorias e até a possível estagnação deste mesmo paradigma.
Mas é principalmente no sufrágio indirecto que se focam muitas das críticas ao processo eleitoral americano. Era comum nos antigos regimes liberais esta práctica (como visto em Portugal, na Carta Constitucional de 1826, que previa a formação de juntas eleitorais). Mas, volvidos dois séculos, fará sentido que ainda se continue a eleger indirectamente? Ou que o sufrágio directo e universal, norteado pelo princípio da igualdade entre cidadãos-eleitores, é uma das conquistas que melhor representa o Estado de Direito Democrático, eliminando possíveis entraves injustos ao respeito pela vontade soberana do povo?
Problemática ou não, esta vicissitude constitucional nos Estados Unidos é, ao dia de hoje, inédita no que toca à eleição do Chefe de Estado nos regimes demoliberais. Constitui um alvo de discussão quando se assiste à batalha quadrienal entre os mesmos dois partidos (com expressão eleitoral muito superior a quaisquer outros) que há muito dominam o espaço político americano.
[Nota: Este artigo foi escrito com base no antigo acordo ortográfico.]
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