O Jornal Tribuna esteve à conversa com a Prof.ª Dra. Ana Gama, especializada em Psicologia Escolar, que explica como é que a psicologia pode auxiliar a busca da compreensão e a afirmação da própria orientação sexual.
Considera que atualmente ainda existe algum tipo de preconceito face a pessoas com diferente orientação sexual? Julga que esse é um dos motivos para a existência do bullying nas escolas?
Sim. Ainda existem preconceitos, pré-conceitos e julgamentos morais e sociais. Questionar ou utilizar o rótulo “pessoas com diferente orientação sexual” é uma forma de discriminação positiva. É importante combater este estigma: todas as pessoas têm uma orientação sexual e nenhuma é diferente - existe, sim, uma diversidade. Algo tão simples como a forma como utilizamos a linguagem, escrita ou verbal, tem um impacto substancial na comunicação com o/a outro/a. Por isso, torna-se fundamental estarmos conscientes disto e, ao mesmo tempo, ensinarmos as diferentes gerações. Na minha perspetiva, assim podemos, consequentemente, diminuir os preconceitos.
Se o preconceito existe, infelizmente, ele vai estar associado a diversas situações de violência, seja em contexto escolar, laboral ou social. Em 2021, foi realizado um estudo pelo Observatório Nacional do Bullying (ObNB) que demonstra que a orientação sexual é, em 7.3% dos casos, o motivo de práticas de violência nas escolas e, em 6.1%, o motivo para a identidade de género. Mais preocupante ainda é que 3.7% das vítimas necessita de hospitalização. Estatisticamente, poderão ser números baixos para alguns/as, mas significativos para mim, enquanto pessoa. A violência, em qualquer forma ou em qualquer contexto, deve ser discutida e travada.
Há jovens que não chegam a confessar a sua orientação sexual por recearem um possível afastamento das pessoas que os rodeiam, nomeadamente da família e amigos? Pode até levar a uma possível negação do que realmente sentem?
Sim e sim. Nós, pessoas, somos seres sociais, precisamos de interação e contacto. Com isto, sentimos a necessidade de aceitação do/a outro/a. Porém, tudo o que se afasta da normalidade estipulada pela sociedade e pelo contexto é assustador e podemos negar ou simplesmente não demonstrar. Como muitos jovens relatam: “vivemos pela metade” – o que promove muito sofrimento emocional e psicológico.
O que é irónico, no meu ponto de vista, é que a sociedade é cada um de nós, cada pessoa, cada personalidade e cada ideal. Nós é que construímos o preconceito, o padrão, e a educação é a base disto tudo. Por exemplo, se eu for educada num contexto familiar homofóbico, a probabilidade de eu ter exatamente esse padrão de comportamento é elevado, bem como a transmiti-lo de geração em geração. Se eu for homossexual, nesse contexto, vou negar a minha orientação porque sempre ouvi que “é uma doença”. Isto acontece em pleno 2022. É fundamental educar para a aceitação, inclusão e diversidade. Felizmente, existem cada vez mais movimentos de mudança.
Em que faixa etária se verifica mais este problema de falta de aceitação da sua própria orientação sexual e da sua afirmação perante os outros?
Uma pergunta muito pertinente a que tenho de responder: em qualquer fase. Cada uma terá os seus desafios.
A adolescência é uma fase de diversas mudanças no/a jovem, onde várias questões surgem. Associada a estas mudanças está a ser moldada uma personalidade, uma pessoa. Esta será a fase onde nos questionamos sobre a nossa sexualidade e identidade, levando a que seja o momento mais confuso.
Em contrapartida, quando somos adultos e questionamos a nossa orientação e identidade, somos mais resistentes à mudança e muitas questões vão surgir. Normalmente, ocorre uma crise de identidade em que tudo é questionado.
Não há uma fase boa ou má, há um processo de autoconhecimento e de autoaceitação. Que irá depender não só da pessoa, mas também dos contextos à sua volta.
Como é que as instituições de ensino conseguem lidar com os alunos que se identificam com o género oposto? Gera algum conflito entre estes e a restante turma/escola?
Acredito que a atuação da escola irá depender da situação. Infelizmente, existem muitas situações de violência escolar associadas à orientação sexual e à identidade de género (e outras) que não são reportadas e, por isso, nunca chegam a ser identificadas nem trabalhadas. Por outro lado, quando conseguimos reconhecer, queremos resolver a situação, mas vai sempre depender do meio e da disponibilidade dos corpos dirigentes das Escolas. A comunicação e a educação, para mim, serão sempre a base para a resolução de qualquer conflito. Discutir abertamente sobre este assunto, instigar o conhecimento dos jovens, desenvolver workshops com instituições da área, promover a partilha de experiências, entre muitas mais dinâmicas, devem de ser realizadas antes de existir violência. O nosso objetivo não deve ser intervir quando há um conflito, mas educar para prevenir o mesmo.
Que sinais é que uma pessoa apresenta quando está neste conflito interior?
Esta é uma resposta difícil de dar. Os sinais vão variar de pessoa para pessoa. Cada um/a manifesta o seu sofrimento de forma diferente e qualquer conflito interno será vivido de forma singular. Os sinais mais comuns, na maioria das vezes, são a ansiedade, o isolamento ou falta de vontade de interagir socialmente, a sensação de fadiga/cansaço mental, os pensamentos e ruminações negativas, as alterações alimentares e de sono, as dificuldades em manter o foco e a atenção, a irritabilidade e as mudanças de humor. E deixo um apelo para que se um/a colega, amigo/a ou familiar sentir este tipo de mudança fale com a pessoa e incentive a procurar ajuda profissional. Tal como, se tu estás a passar por uma situação de conflito ou mal-estar psicológico, procura ajuda!
Julga que há orientações sexuais mais bem aceites do que outras?
Socialmente sim. Se está correto? Claro que não! A heterossexualidade é aceite, diria, em qualquer parte do hemisfério. Por outro lado, o intersexo é um conceito desconhecido e pouco discutido, mesmo entre públicos mais jovens e, por isso, difícil de compreender. Tal como há um maior conhecimento e discussão sobre a homossexualidade em comparação com a assexualidade. E aqui reside um dos problemas da diversidade, a falta de educação e o conhecimento. A sexualidade é um tabu na sociedade portuguesa, quanto mais a orientação sexual ou a identidade de género.
Que mecanismos é que a psicologia utiliza para ajudar a resolver esta questão?
A psicologia apresenta diversas ferramentas e terapias que podem ajudar as pessoas a analisar, compreender e responder aos seus conflitos internos. No entanto, é importante que a pessoa/cliente se sinta confortável e segura com o/a profissional, que consiga desenvolver uma relação empática e terapêutica. Posteriormente, é necessário perceber que há métodos de trabalho que serão benéficos para algumas pessoas e outros métodos que podem não encaixar. Por exemplo, se eu utilizar a escrita, em papel e caneta, como forma de trabalhar processos de consciência interna, mas o/a cliente detestar escrever, o método não será o mais benéfico para a pessoa. Neste sentido, devemos escolher um/a psicólogo/a e uma metodologia de trabalho com a qual nos identificamos.
No caso da temática da orientação sexual e identidade de género, recomendo procurar profissionais especializados/as na área. Por outro lado, existem Associações e Instituições que se focam no apoio e acompanhamento de crianças, jovens e adultos. Podem também recorrer a linhas de apoio telefónico, consultas e chats online, iniciativas de acolhimento, grupos de discussão, entre mais iniciativas de apoio e acompanhamento nacionais.
Que conselhos daria para os pais, família e amigos de quem se sente neste dilema interior?
Se pudesse falar abertamente, sem qualquer limite, diria: “Escolhe o lado do apoio e do carinho. Educa-te e acompanha. Sê o peso bom que equilibra os pratos da balança.”.
Não quero, com isto, ser injusta. Os dilemas e a mudança não acontecem apenas na pessoa, os restantes contextos têm de se adaptar. Por vezes é difícil a um pai ou uma mãe ouvir o reconhecer de uma orientação sexual ou identidade de género (que não esperavam), principalmente se o processo de descoberta e aceitação foi feito individualmente. A primeira reação poderá ser de choque e é importante que a pessoa que está a passar por estes dilemas dê espaço e tempo para que o/a outro/a se reorganize, que o momento de choque passe e se inicie uma construção conjunta. Posteriormente, podemos proporcionar um espaço de reflexão para que os/as outros/as possam exprimir os seus sentimentos e aproveitar para dar informações corretas e rigorosas para evoluírem para novos pontos de vista. Encontrem profissionais qualificados que deem orientação e apoio, associações e instituições capacitadas para informar e intervir. Este caminho/processo não tem de ser feito sozinho.
Por fim, que conselhos dá a quem se encontra ainda numa situação de dúvida e de medo quanto à afirmação do que realmente sente? Julga que o acompanhamento pela psicologia representaria uma grande ajuda para estes casos?
Em qualquer processo, o acompanhamento psicológico é uma mais-valia. No entanto, é importante que a pessoa esteja disponível para o realizar. Por vezes, em consulta, acompanhamos clientes que necessitam de apoio, mas ainda são resistentes à terapia, à mudança. Os/as psicólogos/as não podem fazer o processo pelos/as clientes, nós orientamos, guiamos e apoiamos. O processo, a parte mais difícil, tem de ser feita, todos os dias, pela pessoa/cliente. O meu conselho é: “Se tu estás numa situação de dúvida, medo e ansiedade: está tudo bem. Por diferentes motivos, sentimo-nos todos assim, em algum momento. Percebe que não és a única pessoa a passar por este processo. Respira fundo e pede ajuda! Encontra pessoas formadas e especialistas que te podem acompanhar e apoiar. Nunca irás estar sozinho/a, haverá sempre uma pessoa que acredite em ti, que te dará a mão.”
Comments