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  • Foto do escritorFrancisca Bastos

Quando poderão pessoas trans viver em paz?

Somente no ano passado é que a Assembleia da República consagrou 31 de março como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Todos os dias deveriam ser dias da visibilidade trans mas, numa sociedade onde a transfobia persiste, é importante haver um marco específico dedicado a «aumentar a consciencialização sobre a discriminação que as pessoas trans enfrentam diariamente, e, também para celebrar as pessoas trans, as suas identidades e os seus contributos para a sociedade» (ILGA, 2023).


Este artigo aborda a temática partindo de três exemplos concretos: numa perspetiva mais macro, é analisado um caso internacional, seguido de um caso gritante de transfobia em Portugal e, por fim, um caso de ainda menor dimensão, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.


Atenta-se para o conteúdo gráfico dos casos de transfobia que se seguem.



Brasil, o país onde a transfobia é berrante


Dados de um relatório realizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) revelam que, no último ano, 145 pessoas trans foram mortas no país.


A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos, e quase 80% das vítimas nem sequer chegam a atingir a média etária. A ANTRA registou 36 homicídios de pessoas trans menores de idade nos últimos 7 anos. Acrescenta-se ainda que na generalidade as vítimas são mulheres trans e que 78,7% das assassinadas são pessoas trans negras. 


No seu grosso, os crimes são marcados pelo desmesurado e brutal uso da violência. Exemplificativo disto são os casos de Roberta da Silva e Julia Nicoly Moreira da Silva. Em junho de 2021, Roberta, mulher trans de 32 anos, que vivia em situação de rua, foi queimada viva por um adolescente num terminal rodoviário no centro da capital do estado de Pernambuco, Recife. Em julho de 2023, Julia, de boca amordaçada e pulsos amarrados, viu o seu lar transformar-se no local do seu assassinato – foi brutalmente golpeada no pescoço e no peito por um homem de 19 anos com a ajuda de um adolescente que à altura teria 17 anos. Em seguimento da denúncia, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro vincou que o assassinato «foi impulsionado pelo ódio nutrido pela vítima em razão desta ser trans».


A análise sublinha ainda o vazio jurídico acerca da criminalidade contra pessoas trans no Brasil nas bases de órgãos públicos, «como vem sendo insistentemente denunciado desde a primeira edição deste dossiê, a ausência de dados governamentais é um problema sério que precisa de atenção. Dados sobre essas violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é reportado pelos canais de notícias» - Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, 2024.



Gisberta, hoje e sempre relembremos a tua história!


Gisberta Salce nasceu a 5 de setembro de 1960. Forçada pela vaga de homicídios de pessoas trans na sua terra natal, a mulher brasileira abandonou São Paulo com 18 anos rumo à França, de onde, 2 anos depois, sairia para viver definitivamente em Portugal.


O resto da sua vida foi ainda mais complicado do que o seu início. Gisberta era seropositiva pelo menos desde 1996. Diagnosticada ainda com tuberculose pulmonar, pneumonia e candidíase laríngea, o seu quadro clínico culminou em astenia, anorexia, febre, anemia, dificuldades respiratórias e mialgia.


A Gi era bastante conhecida na noite do Porto e adorada por todos os que tinham o prazer de a conhecer. Inicialmente, a sua presença foi marcada pelo sucesso, mas passados uns tempos «começou a ir para casas com rendas cada vez mais baixas, depois passou por vários bairros sociais, até cair naquele buraco» – queda essa que determinou o princípio do fim da sua existência.


Construiu uma barraca com as suas coisas e foi este o buraco que Gisberta fez de sua casa. No final de 2005, Fernando, Ivo e Flávio reuniam-se para grafitar num edifício abandonado no Porto, sito na zona do Campo 24 de Agosto. 


Os 3 rapazes conversaram com ela e começaram a visitá-la regularmente. Dali nasceu uma aparente relação de amizade, ou pelo menos de empatia: Gisberta chegou a relatar os seus problemas de saúde, verbalizou a sua fraqueza. Quando a visitavam levavam consigo comida e, alegadamente, até chegaram a confecionar refeições no local.


Mais tarde, Fernando, Ivo e Flávio mencionaram Gisberta aos seus colegas da Escola Augusto César Pires de Lima e da Oficina São José, instituição que acolhia 11 dos 14 rapazes menores envolvidos. A partir deste momento, o prédio tornou-se o ponto de encontro para agredir Gisberta. A partir de 15 de fevereiro de 2006 encontravam-se no «Pão de Açúcar» (nome dado ao edifício que ia ser um centro comercial) para «darem porrada na Gi».


Segue-se uma cronologia para melhor compreensão e detalhe dos eventos que se sucederam.


(15/02)

  • Flávio empunha uma pedra, arremessa-a na direção de Gi, atingindo-a na cabeça – esta cai no chão a sangrar.

  • Alguns minutos depois consegue-se levantar, mas David faz-lhe uma rasteira provocando-lhe uma nova queda.

  • Todos os menores, à exceção de Vítor Santos, lançam-se sobre Gisberta e conjuntamente agridem-na com paus e pontapés.

  • Enquanto a agrediam, Vítor Santos grita «para lhe baixarem as calças porque ‘queria ver se era homem ou mulher’» (informação extraída do Acórdão do Tribunal).

  • Com as dores, Gisberta começa a gritar, o grupo põe-se em fuga receando que aparecessem os seguranças do parque de estacionamento perto do prédio.


(16/02)

  • Fernando, Ivo e Flávio reparam que o estado de Gisberta se agravou – não se consegue manter de pé, está deitada em cima de um colchão, treme, fala num tom quase inaudível e apresenta sangue já seco na cabeça.

  • Os 3 rapazes perguntam se esta quer ajuda, ao qual responde apenas um cigarro e que me deixem em paz – não a deixaram.

  • Os 3 vão para a escola, mas mais tarde regressam 6 do grupo de 14.

  • José António diz a José Alexandre para despir a Gi. No entanto, este recusa porque esta cheirava mal e tinha sida.

  • José António e Jorge Ismael arremessam pedras e batem com paus nos joelhos e nas pernas. Gisberta grita e o grupo foge, somente por uns momentos.

  • Voltam e ordenam que se levante.

  • Gisberta diz que não consegue – voltam a agredi-la. Deitada no chão e impossibilitada de se defender, Gisberta encolhe-se e cobre-se com o cobertor gritando não faz isso, cafajestes.

  • Após as agressões, os menores destroem-lhe o abrigo.


(18/02, 14h30)

  • David, um dos 6 que tinha combinado o regresso ao Pão de Açúcar, ordena que Gisberta se levante. Esta diz que não consegue.

  • Mais pontapés. Gisberta chora compulsivamente com as dores que sente.

  • David agarra num «barrote em madeira com cerca de 1.5 metros de comprimento por 20 centímetros de diâmetro e deixou-o cair sobre o corpo de Gisberta», apurou, mais tarde, a investigação do caso.


(19/02)

  • O grupo cumpre a rotina quando se deparam com Gisberta deitada no chão, vestida com uma camisola e nua da cintura para baixo, imóvel, sem conseguir falar.


(21/02)

  • O grupo volta, vê no corpo arranhões e equimoses; Gisberta não responde, tem a cara pálida e não dá sinais de que está a respirar – os agressores pensam que esta está morta.

  • Avisam os restantes de que Gisberta tinha morrido, recolhem todos os paus que tinham utilizado para a violentar e debatem o que fazer com o corpo.


(22/02, 8h30)

  • Os agressores embrulham Gisberta em mantas e transportam-na até ao poço existente no edifício, que tinha água suficiente para ocultar a vítima.

  • Empurram-na para o interior, Gisberta fica submersa na água e morre.


A investigação concluiu que a causa de morte de Gisberta foi o afogamento em si, uma vez que esta se encontrava viva até ser atirada ao poço e os seus pulmões se encherem de água.

Não aguentando mais, Flávio contou os factos à diretora de turma, que entrou em contacto com as autoridades.


O que aconteceu aos cafajestes?


Vítor Santos, o único dos rapazes com 16 de anos, foi condenado a oito meses de prisão efetiva pela prática do crime de omissão de auxílio.


Numa fase inicial, os 13 restantes foram responsabilizados pela prática de coautoria de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada e a título de dolo eventual. Tendo a autópsia determinado o afogamento como causa da morte e não as agressões, a 11 dos rapazes foi imputada a prática de um crime de ofensas corporais qualificadas e a 2 deles foi meramente imputado o crime de omissão de auxílio.


«Aquilo já morreu. Ele não pensa nisso. Ele não fala sobre aquilo porque aquilo morreu» – relata o avô de Rodolfo, um dos envolvidos, numa entrevista realizada em 2016, anos após o cruel assassinato de Gisberta.


Gisberta desaparece fisicamente para ser eternizada como um símbolo da impunibilidade da transfobia que até aos dias de hoje se perpetua na sociedade, da forma como a vida de uma pessoa trans é facilmente descartada e ignorada. 



Transfobia na Academia


Em abril de 2022, o FEMfdup, em parceria com a AEFDUP e o HeForShe FDUP, fundou o Eu Menstruo, uma iniciativa que após imensa contestação viu a luz do dia – um projeto de combate às situações de pobreza menstrual na Academia. A ideia consiste em deixar nos bancos presentes nas wc do edifício da faculdade pensos e tampões. Todas as pessoas que menstruam podem ajudar e ser ajudadas doando e zelando pela sua reposição.


No semestre passado, alguém decidiu vandalizar um dos cartazes afixados nas casas de banho a explicar o projeto, riscando as pessoas que menstruam e escrevendo por cima “mulheres” – passa-se, portanto, a ler todas as mulheres podem ajudar e ser ajudadas, deixando clara a conceção errónea e transfóbica de que somente mulheres menstruam. Nem todas as mulheres menstruam, como por exemplo as mulheres que padeçam de algum distúrbio hormonal, e nem todas as pessoas que menstruam são mulheres, como é o caso de pessoas não binárias e de alguns homens trans.


O(s) indivíduo(s) não se contentaram com uma vandalização, tendo procedido a outra recentemente. Qual será a justificação para reproduzir o mesmo ato duas vezes, que não a visceral falta de empatia por linguagem mais inclusiva e pela autodeterminação e identidade de género de cada pessoa? Não deverá a comunidade académica refletir sobre a forma como alguém ou um grupo de “alguéns” se sente tão confortável em riscar 4 palavras, algo que parece tão simples, mas que significa tanto? – é uma micro agressão, o caráter discriminatório direcionado a pessoas não cisgénero não engana.



Para refletir


No mês em que se celebra o Dia da Mulher (8 de março) e o Dia da Visibilidade Trans (31 de março) há que relembrar que a definição de mulher extrapola o caso da pessoa que nasce com o sistema reprodutor feminino e que se identifica com o género feminino. Apesar de uma vertente do feminismo radical tentar tornar o movimento feminista excludente de mulheres trans, uma mulher trans é tão mulher quanto a mulher cisgénero – Gender is not determined by biology, but by social and cultural forces, afirma Judith Butler, autora proeminente de teoria queer.


Segundo Butler, o género não é determinado pelo sexo atribuído à nascença, mas é antes moldado por ditames socioculturais, evoluindo consoante o contexto histórico e as mutações culturais. O género é, portanto, um conceito de natureza complexa e dinâmica, em constante construção e realização, sujeita a contínuas renovações e reinterpretações. A autora reforça a importância de se reconhecer e questionar estes limites rígidos, abrindo assim a possibilidade para um entendimento mais inclusivo e diverso do que significa ser uma mulher.


Butler teoriza que o sistema de género binário perpetua desigualdades sociais e restringe a expressão de identidade de cada indivíduo. Esta categorização marginaliza e oprime os que não se conformam com as normas de género tradicionais, perpetuando a discriminação, o preconceito e a exclusão – concretiza-se em casos como os supramencionados de Roberta da Silva, Julia Nicoly Moreira da Silva e Gisberta Salce.


Aponta ainda que as categorias de identidade frequentemente funcionam como ferramentas de controlo em sistemas sociais e políticos. Ao se ‘encaixar’ indivíduos em grupos específicos baseados em características como a raça, o género ou a sexualidade, estes regimes reguladores impõem certas normas e expectativas que governam comportamentos e limitam a possibilidade de autoexpressão.


Ao se reconhecer e desafiar este sistema opressor, pode-se trabalhar e criar uma sociedade mais inclusiva e equitativa, na qual a liberdade, a autoexpressão e a autodeterminação prosperam independentemente do género imposto a alguém.



Francisca Bastos

Departamento Sociedade

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