“E vejo-me de pé a olhar para a pintura com as duas linhas, uma roxa e outra castanha, que se cruzam a meio numa imagem alongada, e vejo que pintei as linhas devagar e com tintas de óleo espessas que escorrem, entretanto.” Assim se inicia o livro inaugural do último projeto romanesco de Jon Fosse, “O outro nome”, que, segundo a crítica, constitui um dos pontos cimeiros da sua carreira.
Este livro contém as primeiras duas partes da série “Septologia”, considerada o “magnum opus” do escritor, que se estende por mais duas obras. Aqui, abordam-se temas como a Arte, Deus e a Morte numa longa meditação sem quebras que percorrerá este septeto ao longo de 1300 páginas. Curiosamente, enquanto trabalhava em Septology, Fosse, vivia em pânico com a ideia de morrer antes de acabar o livro. Trabalhou nele sempre, metodicamente, entre as quatro e as nove da manhã.
Sobre Jon Fosse
A obra perdura, o Homem não. Contudo, a criação não é impermeável ao seu criador. Jon Fosse, o mais recente laureado pela academia sueca “pelas suas peças de teatro e prosa inovadoras que dão voz ao indizível”, é um dos mais aclamados e celebrados autores vivos. Nasceu em 1959, em Haugesund, na costa ocidental da Noruega, e cresceu em Strandebarm, envolvido pela natureza – mar, vento e montanhas. Aos sete anos de idade, um acidente quase lhe tirou a vida, num evento que hoje descreve como uma experiência que o formou enquanto escritor.
“Sem isso, duvido que tivesse vindo a ser [um escritor]. É fundamental para mim. Esta experiência abriu-me os olhos à dimensão espiritual da vida (...).”
Prémio Nobel da Literatura. Ilustração de Niklas Elmhed.
@The Swedish Academy
A sua vasta obra, traduzida em mais de quarenta línguas, conta com uma grande variedade de géneros, nomeadamente, peças de teatro, romances, poesia, ensaios e livros infantis. As suas obras exploram frequentemente temas como o existencialismo e as relações humanas, sob um estilo que alguns chamam de minimalista.
Embora seja atualmente um dos dramaturgos mais representados mundialmente, Fosse ganhou grande reconhecimento pela sua prosa. Nem tudo no seu percurso foi feito de conquistas. Lutou contra o alcoolismo, que utilizava como escape para ignorar a ansiedade –“tinha de beber para ser normal”. O único momento sóbrio era quando escrevia. Em 2012, percebeu que tinha de mudar de vida e converteu-se ao catolicismo. O universo teatral pelo qual enveredou parecia-lhe pouco natural e até forçado, mas em 1993 estava falido e, após alguma insistência, decide escrever uma peça para um amigo que tinha no mundo do teatro. O que de início foi aceite com pouco entusiasmo, tornou-se a maior revelação da sua carreira.
Senhor de uma linguagem muito própria, que não nos é, de todo, alheia, tem um ritmo diferenciado que abdica da pontuação mais convencional. Fosse escreve como que embalado pelas ondas, descrevendo a escrita como um ato musical, mais do que intelectual, ao que gosta de chamar de “prosa lenta”.
“Escrevo como quem está a ouvir e a compor música, no sentido em que uma nota pede outra, uma frase abre caminho à seguinte.”
Sobre “O outro nome”
Mais um ano finda. Asle, um velho pintor viúvo e solitário, encontra-se parado diante da sua última tela. Não sabe se está pronta, se gosta dela ou se a levará juntamente com as outras treze que preparou para a sua última exposição em Bjørgvin. A partir daqui, inicia-se uma longa meditação sobre o seu passado de jovem pintor fracassado, da sua relação com Ales, a sua falecida mulher, e a conversão tardia ao catolicismo.
O Outro Nome. Septologia I-II
@Penguin Livros
Asle, artista norueguês, católico convertido, barba grisalha e cabelo comprido, atado atrás por um elástico, partilha parecenças com o autor do livro. Leva uma existência apagada, entre comer, rezar, dormir e pouco mais. Porém, existe um outro. Ales, também ele pintor, solitário e alcoólico. Duas histórias que se cruzam. O inverso uma da outra. Luz e sombra. Fé e desespero. Nunca saberemos se serão uma ou a mesma pessoa; contudo, este contraste revela uma reflexão poderosa entre aquilo que se é e o que se poderia ou se esperava ser.
A juntar a este desdobramento, se assim o for, surgem episódios em forma de imagens que desfilam de forma onírica, memórias que irrompem sobre o real, “reserva de imagens que tenho dentro da cabeça, todas essas imagens que me enchem a cabeça” (p. 301). A prosa constitui-se por parágrafos que se distendem por páginas pontuadas, por vezes, por falas. As palavras seguem-se, repetem-se ressoando e ecoando como se fosse uma prece que nos enreda e enleva.
Escrito num estilo hipnótico e inconfundível, “O outro nome” pode ser um bom ponto de partida para quem pretende iniciar a descoberta pelo universo literário de Jon Fosse.
Mariana Polido
Departamento Cultural
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