29 de julho de 2022. Levanto-me estremunhada e completamente atordoada, típico de um sono profundo interrompido bruscamente. Ainda nem ganhei consciência de quem sou ou onde estou, ainda envolta numa nébula sonolenta, quando ouço a minha mãe de um lado para o outro, interrompendo ainda mais a minha tranquilidade matinal. Ainda completamente chumbada em sono, ouço só a minha mãe a dizer “Despacha-te!”, e atiro-me, juntamente com as minhas mochilas, para dentro do carro. Estou inerte de sono no banco de trás, quando uma memória fulminante me trespassa: saiu o novo álbum da Beyoncé. Como uma digna membra do Beyhive, proponho-me a passar as 6 horas de viagem de carro para o Algarve a ouvir o novo álbum em loop. Pego no telemóvel, coloco os fones e começo a ouvir o álbum por ordem. Começa a dar a música de abertura do álbum: I´m that girl. (Recomendo ao leitor colocar também a música a tocar para entender portanto a minha experiência sensorial). Começa a dar de rompante um beat repetitivo: Please, motherfuckers ain't stop–, please, motherfuckers /Please, mother-, please, mother–, please, motherfuckers
Estava inerte de sono, mas o que estou a ouvir começa a despertar me rapidamente. O que é que estou a ouvir? Começo a duvidar da minha experiência sensorial, com certeza confusa pelas poucas horas de sono. Mas não, não é possível… Nunca a minha mente conseguiria conjurar uma música assim… Bitch, please, motherfuckers, please, mother–, please, mother–
Não, não é possível. Estou mesmo a ouvir o que estou a ouvir? Nunca ouvi nada sequer remotamente semelhante. Please, motherfuckers, please, mother–, please, motherfu–
Não. A música que estava a ouvir era mesmo real. Estou absolutamente chocada, pasmada, enfim, todos os adjetivos que caracterizam um estado de deslumbramento. Please, motherfuckers ain't stopping me Please, motherfuckers ain't stopping me…
Desta experiência absolutamente transcendente nas condições mais precárias imagináveis, passei o resto das 6 horas da viagem a ouvir exclusivamente em loop o Renaissance;e, de resto, também durante o resto das minhas férias, e, na verdade, até ao dia de hoje.
Este relato trata-se portanto, mais do que um artigo de crítica musical (sendo eu, com certeza, demasiado inepta para tal, tamanho é o assemble de samples de afrobeats, ballroom e vogue beats possíveis desmembrar de todas as músicas do álbum).É uma carta de amor a um álbum que foi absolutamente marcante para mim, mas acho que também um álbum que foi um breaking point para a própria artista, Beyoncé, mas também para a indústria da música.
A história da Beyoncé, até o Renaissance, veio a ser traçada por um progressivo mas sólido percurso de aprimoramento da sua própria estética, sendo os seus álbuns progressivamente mais sólidos e coesos; mas veio traçar também a solidificação da Beyoncé enquanto alguém com voz e com coisas a dizer. Nota-se um libertar das correntes que provavelmente a artista sentia no início da sua carreira (com a necessidade de se afirmar dentro da indústria) que atinge novos patamares com o álbum Lemonade, aplaudido por toda a crítica, em que Beyoncé assume as suas raízes negras, reinvindicando uma história que foi roubada à comunidade negra, e devolvendo à sua comunidade uma voz no mainstream, com o hino absolutamente marcante, “Formation” (até fizeram um sketch no SNL, “The Day Beyoncé Turned Black”). É com o Lemonade que se começa a perceber que a Beyoncé é mais do que uma artista famosa, é um ícone e é alguém que fica na História. A sua liberdade artística traz ainda mais brilho ao seu reportório, sendo o Lemonade nomeado para melhor álbum do ano em 2016 (abordarei daqui a pouco o roubo consistente que os Grammy fazem à Bey), e a Beychella, performance de comeback da Beyoncé aos palcos em 2018 no Coachella, considerado uma das performances mais influentes do século XXI, performance baseada na experiência universitária das universidades negras dos EUA. A Beyoncé sai do spotlight pouco tempo depois da sua última tour em 2018, e desde essa altura os fãs aguardavam ansiosamente o seu retorno. Os fãs foram recebendo algumas migalhas, nomeadamente o álbum Black is King, resultante do trabalho para o filme Rei Leão, e ainda umas colaborações, mas tinham passado 5 anos desde que víamos a Beyoncé a solo. Reservada como é, nunca é possível saber quando será a sua próxima investida.
Até agora. O lançamento do Renaissance foi avisado com razoável antecedência, e com o single BREAK MY SOUL. Foi apenas com este single que os fãs conseguiram descortinar qual era a próxima era da artista e as sonoridades que estavam para vir. A verdade é uma: nenhum de nós estava à espera do que ouviu. Lembro-me perfeitamente da minha primeira reação: uma música upbeat, com uma sonoridade completamente diferente do que estávamos habituados a ouvir, essencialmente uma música groovy e com afrobeats, com liberdade de ser feliz (“Release ya anger, release ya mind! Release ya job, release the time! Release ya trade, release the stress! Release the love, forget the rest!”). Não obstante, lembro também de pensar, “hmm, um pouco underwhelming, estava à espera de mais”, e lembro-me do comentário de uma amiga minha que disse que a música parecia saída de um sunset no HONI ou no Bô-Zen (derrogatório). Mas recusei-me a dar uma de vencida e pensar na possibilidade de que a Beyoncé estava a ficar ultrapassada, ultrapassada pela idade, um peso que todas as mulheres na indústria da música carregam - a Bey já tem 40 anos, uma idade já quase geriátrica na indústria da música.
Esperei pacientemente até ao dia 29 de Julho 2022. E que boa surpresa que foi ter sido provada que a minha vozinha interior estava errada. O problema foi que, com BREAK MY SOUL, ignora-se a magnificência do trabalho coeso do Renaissance enquanto álbum, porque se ouvia a música individualmente. Com o lançamento do álbum, todas as músicas se conectam e encadeiam magistralmente umas das outras, parecendo uma viagem pelas galáxias e constelações criadas pelo universo de Beyoncé Knowles. O Renaissance assume como mote a felicidade de se estar vivo e de o querer celebrar, a felicidade de existir enquanto pessoa negra, enquanto mulher, enquanto pessoa queer, enquanto, enfim, alguém que é, unapologetically, a pessoa que sempre foi destinada a ser. E daí resulta um retorno à cultura das comunidades que sempre foram unapologetically elas próprias - a comunidade queer e negra, dos clubes de música house e das ballrooms- sendo o Renaissance quase um arquivo de todas essas influências (é um álbum com uma quantidade enorme de samples), renovando-as e projetando-as na visão de Beyoncé. Disto resulta um trabalho absolutamente surreal, um álbum que soa a puro suor numa discoteca cintilante e cheia de pessoas bonitas para as quais olhar, em que ninguém se sente inibido de se mexer freneticamente. As músicas encadeiam-se de forma fenomenal, onde quase nem se percebe onde acaba a primeira e começa a próxima, todas as músicas vibram na sua próxima individualidade, mas não deixando dúvidas de que todas fazem parte de uma visão conjunta- são músicas claramente reconhecíveis como fazendo parte daquele álbum em específico.
Este álbum absolutamente surreal não passou despercebido. Beyoncé foi nomeada para 9 categorias nos Grammys de 2023. No passado dia 6 de fevereiro, Beyoncé levou para casa 3 Grammys, e, chocantemente, não levou para casa o Grammy de Melhor Álbum. A Beyoncé já foi nomeada não 1, não 2, não 3, mas 4 vezes para Grammy de Melhor Álbum, sendo progressivamente uma aposta cada vez mais forte para levar a estatueta para casa, chegando até ao ponto de parecer ridículo ela ainda não ter ganho nessa categoria, de tantas vezes que foi nomeada e do quão bons foram os álbuns pelos quais foi nomeada (particularmente o Lemonade, e agora o Renaissance). Chegou-se ao ponto inclusive, de Adele, no seu discurso de agradecimento por ser agraciada pelo grammy de Melhor Álbum em 2016, deixar um pedido de desculpas (!), por Beyoncé não ter ganho o Grammy nesse ano, do quão bom o Lemonade foi considerado (“Beyoncé… your album was so monumental!”). Este ano, Beyoncé não ganhou de novo o Grammy de Melhor Álbum, perdeu para o álbum Harry’s House, de Harry Styles. Na manhã que se seguiu, acordei a rezar para que não se concretizasse a maldição que a Recording Academy lançou contra Beyoncé, mas infelizmente voltou-se a concretizar. Deixa a dúvida no ar: porquê? Os fãs voltaram a revoltar-se, na medida em que, de tão absurdo que parece esta decisão recorrente, a única explicação possível ser baseado numa questão racial: a Beyoncé perdeu, das 4 vezes, para pessoas brancas.
Não obstante, com os Grammys de 2023 a Beyoncé torna-se a artista que conquistou mais Grammys de sempre, contando com 32 no total. A paz de espírito que se vê na artista no afterparty dos Grammys, num reels por si publicado, demonstra talvez o mindset vivido por Bey: da falta de necessidade de aprovação por parte da indústria. Está tão solidificada na indústria, que não são os Grammys, nem mais nenhuma organização, que irá ditar a sua permanência ou relevância. É a indústria que se dobra perante ela, e não o contrário (“If I gave two fucks about streaming numbers would’ve put Lemonade up on Spotify”). E continuará a fazer tudo com excelência, com dignidade, e acima de tudo, com a particularidade que lhe é tão característica.
Quanto a mim, e outros meros súbditos da rainha do pop, cá nos mantemos num permanente estado de deslumbramento. Também saiu recentemente o anúncio da Renaissance World Tour, tour à qual infelizmente não vou comparecer (outras responsabilidades mais altas se alevantam… época de exames… I don’t want to talk about it…). Numa desesperada tentativa de apregoar a religião da Beyhive, faço um artigo, manifestamente insuficiente, para espalhar a mensagem da nossa Messias.
I'm that girl, it's just that I'm that girl
From the top of the morning, I shine (ah-ooh)
Right through the blinds (ah-ooh)
Touching everything in my plain view
And everything next to me gets lit up, too!
Isabel Lobo
Departamento Cultural
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