Para aqueles que nunca encaixaram n’algum lugar,
por sempre terem ousado ser mais, porque o pouco não lhes bastou;
Para aqueles que sempre ousaram saber mais sobre o mundo,
porque na sua redoma nunca coube um gigante como eles.
Despejado (do seu antigo apartamento e obrigado a viver com a sua mãe), desempregado (infortuna é a carreira de professor neste sistema), divorciado (de uma ex-mulher que não o suporta) e pai (cujo filho vê, de longe a longe, aos fins de semana). Esta é a melhor forma de descrever o estado de Merlí Bergeron — e, infelizmente, uma realidade que não podemos afastar.
Mergulhado no caos, surge-lhe uma nova responsabilidade: Bruno Bergeron, o longínquo filho que, durante uns tempos, ficaria à sua guarda; a mãe partira em trabalho (e em busca do amor). Coincidente com essa mesma data, Merlí consegue emprego no Instituto Àngel Guimerà como professor substituto de Filosofia.
Em sala de aula, o velho Bergeron foge completamente a um programa anual quadrado de conteúdos programáticos (as ditas «aprendizagens essenciais» que, entre nós, têm assombrado o Ensino Português, especialmente o Secundário) e mune-se, para os lecionar, de instrumentos alternativos, imprevisíveis e, por vezes, censuráveis — se o espaço mo permite, um bem-haja ao Merlí do meu 11.º ano (até breve, professor T). Nos tempos que correm, talvez seja disso que precisamos: de quem ouse ser diferente.
Há muito que o Ensino se tem mediocremente reduzido a uma sala de aula, cujos estudantes são tão só maquinais copistas da informação (por eles não processada) que o professor lhes transmite. Com Merlí, não. Durante três temporadas (em Merlí e, como continuação, Merlí: Sapere Aude), que atravessam temporalmente o Ensino Secundário e o Ensino Superior no ramo da Filosofia, cada episódio constrói, de forma meticulosa e ficcional, um crossover entre a escola e o quotidiano — nichos, que, infelizmente, parecem tão paradoxais entre si nos dias que correm.
A verdade é que a sala de aula é o ponto de partida para uma realidade que muitos desconhecem. Com o professor Bergeron, mais uma vez, não. Os conteúdos por si lecionados — na esteira de antigos pensadores e de contemporâneos filósofos — são o primeiro veículo, para os seus alunos, de uma nova forma de pensar. É-lhes requerido o tão velho (e ao qual estamos cansadamente habituados de ouvir, embora raras sejam as vezes que se o pratique) brocardo «pensar fora da caixa». Porque será através dele que os seus peripatéticos[1] (como os intitula) serão capazes de verdadeiramente reproduzir, à sua maneira e na prática, o que tão bem aprenderam numa escola que os preparou para o amanhã — e não para um conjunto de fórmulas e conceitos infindáveis.
Poderemos ser sempre o aluno rebelde, a aluna extrovertida, o aluno exibicionista, a aluna estudiosa ou o aluno tímido (entre outros estereótipos), desde que saibamos como e o que aprender e, acima de tudo, desde que saibamos questionar — porque quem questiona procura saber mais, porque quem questiona pretende ir além. Sapere aude.
Francisco Paredes
Departamento Cultural
[1] peripatéticos: do grego, significa “ambulantes”, “itinerantes” ou “aqueles que passeiam”; a escola dos peripatéticos era conhecida pelos seus seguidores, que, enquanto caminhavam, ensinavam e aprendiam ao ar livre.
[n.a.] nota do autor: a série Merlí encontra-se disponível, de forma gratuita, para além das grandes plataformas de streaming, na nossa RTP Play.
Comments