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Foto do escritorRoberto Saraiva

Saramago, Goya (e outras coisas)

Se um dia tiveres um filho, ele morrerá porque tu nascestes, desse crime ninguém te absolverá.”, esta frase de Saramago, retirada do romance “A Jangada Pedra”, revela-nos um fatalismo aparente despojado de qualquer esperança. A humanidade é, em si, o berço e o túmulo de si própria. O homem, ao multiplicar-se, acelera também a sua eventual morte, o seu destino implacável. Desse modo, ter um filho é o mesmo de condená-lo a uma morte certa.


Tal conclusão reencaminha-nos para uma imagem distante, um quadro de Goya, pendurado algures no Prado onde vemos um Cronos enraivecido, coberto pelas chamas que emanam da sua própria pele, a engolir o seu filho, o deus supremo da mitologia grega, Saturno. Estando a humanidade condenada a este ciclo vicioso, de criação e destruição permanente, em que é que podemos confiar para quebrar esta aparente maldição?


A doutrina diverge, alguns niilistas, porventura, diriam que não há como evitá-lo, que a vida é uma experiência desvirtuada de qualquer sentido. Outros, porém, como Kierkegaard ou Sartre divertir-se-iam em digladiar-se na procura de uma resposta para esta questão. Mas, entre nós, quem saberá verdadeiramente a resposta? Se todos nós vamos morrer, qual é o sentido da vida?


No romance de Saramago, empiricamente descrito como sendo um texto literário onde se debate o possível renascimento da União Ibérica, o que se debate verdadeiramente é a consequência dos atos dos homens e as implicações que eles têm no mundo que os rodeia. A Península Ibérica separa-se do resto da Europa porque alguém atira uma pedra à água, enquanto outro dos protagonistas vê-se acompanhado por estorninhos, e uma mulher faz um risco com um pau que não desaparece da terra. São estes atos, comportamentos aparentemente desconectados uns dos outros, que criam uma série de consequências que une as personagens e faz mover a narrativa.


É quando se debate quem foi o responsável pela separação da Península Ibérica do resto da Europa, que Pedro Orce reconforta Joaquim e diz-lhe a frase inicial, desresponsabilizando-o pelo desastre geográfico (e geopolítico), dando a entender que, tal como a morte de um filho, a separação era inevitável.


Recorrendo a este diálogo, Saramago parece desvalorizar o livre-arbítrio e apontar para uma perspetiva determinista da Humanidade (e da própria História). Não seria de esperar o contrário do autor que mostrou ao leitor, noutro dos seus romances, O Memorial do Convento, uma Infanta Maria Bárbara angustiada com a sua existência, que questiona a mãe sobre o sentido da vida só para a rainha lhe responder: “Nascer é morrer, Maria Bárbara.”.


Ironicamente, apesar das fortes convicções políticas do nosso Nobel da Literatura, a tragédia da vida e as dúvidas sobre o seu significado são transversais a todas as classes, frequentes em todos os padrões da sociedade e em todas as épocas da Humanidade. Contudo, no futuro, não farão parte da História as dúvidas de Joaquim Sassa, nem as divagações da Infanta Maria Bárbara e muito menos os pensamentos de Roberto Saraiva. Mas, como o próprio escritor defendia, a História não é a vida real, somente a literatura o é.


Talvez na ficção de “Jangada de Pedra” haja uma verdade mais real do que a própria península onde vivemos; Talvez no quadro Goya haja uma paternidade mais verídica do que muitas com que somos presenteados no nosso quotidiano; Talvez haja qualquer sentido nas palavras que escrevo; Talvez nascer não seja só morrer, Maria Bárbara.


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