No passado dia 1 de dezembro celebrou-se o Dia Mundial de Combate ao HIV, isto é, ao Vírus da Imunodeficiência Humana ou, como é popularmente conhecido, Dia Mundial de Combate à SIDA. Embora hoje em dia já seja uma doença controlável na maior parte dos casos, a verdade é que persiste um grande tabu à volta desta condição na nossa sociedade e até mesmo na nossa legislação. Pergunta-se: como combater, durante o resto do ano, estes preconceitos?
Antes de mais, importa salientar que HIV e SIDA não são necessariamente sinónimos. Por um lado, o HIV (Human Immunodeficiency Virus) é, como o nome indica, um vírus que pode ser contraído de três maneiras possíveis: relações sexuais desprotegidas; partilha de agulhas, seringas ou outro equipamento semelhante; transmissão da mãe para o feto durante a gestação, ou através do leite materno na amamentação. Ou seja, o primeiro ponto a memorizar aqui é: o HIV não é um vírus exclusivo à prática de relações sexuais desprotegidas.
Por outro lado, SIDA é o acrónimo utilizado para “síndrome de imunodeficiência adquirida”, que corresponde ao aglomerado de sintomas que podem surgir após a infeção por HIV, nomeadamente gânglios inflamados no pescoço e nas virilhas e perda rápida de peso. A chave aqui é compreender que quem está infetado com o vírus do HIV é um paciente seropositivo, mas que pode nunca chegar a desenvolver SIDA.
Um dos grandes preconceitos para com os pacientes do HIV, no passado, estava precisamente relacionado com a falta de conhecimento face ao modo como se poderia contrair a doença. A sociedade em geral acreditava-se que poderia contrair o vírus através de um abraço, de um cumprimento de mãos, da partilha de talheres ou copos ou ao utilizar a mesma casa de banho que um paciente (quem é que nunca ouviu alguém a dizer “para ter cuidado” ao utilizar casas de banho públicas por essa razão?). Embora muitos destes receios infundados e discriminatórios continuem a fazer parte da sociedade, o que nos dias de hoje se destaca é a crença de que há grande chance em contrair-se o vírus através da saliva – o que é mentira. O SNS aponta a saliva como não sendo uma das maneiras de se contrair o vírus do HIV, assim como os restantes comportamentos referidos supra.
“No principio foi muito complicado. Eles [os pais da paciente] tinham muito poucas informações ou nenhumas sobre a doença. Achavam que a minha roupa tinha que ser lavada a 90.º graus, que os meus talheres tinham que ser lavados com lixivia. Houve um impacto muito mau durante os primeiros anos” – Relato de Victoria (nome fictício), para a TVI 24.
Estas crenças erróneas fazem com que vários pacientes seropositivos tenham sérias dificuldades em se adaptar à sociedade em que estão inseridos, sobretudo, nos campos da vida amorosa. Há vários relatos de pacientes que, assim que tornaram a sua condição pública, se sentiram imediatamente rejeitados socialmente, sentindo sobretudo dificuldades nas áreas afetiva e amorosa, mas também laboral.
“Apesar de nos dias de hoje haver bastante informação sobre esta doença que afeta inúmeras pessoas a nível mundial, ainda há bastante discriminação, isto a meu ver, tanto a nível pessoal como profissional. Eu próprio tenho sentido isso, nos meus últimos projetos profissionais tenho vindo a sentir cada vez mais o pesadelo, por ser seropositivo. Poucas entidades patronais encaram como sendo uma doença que pode ser controlada, tendo-se os cuidados necessários.” – Testemunho de utente do Centro viHda+.
E se a vida se complica para quem é diagnosticado com o vírus, para quem é homossexual a vida pode tornar-se um inferno. Infelizmente, à homofobia ainda muito presente na sociedade portuguesa, junta-se também a ignorância e o preconceito das pessoas face aos homossexuais seropositivos. A 5 de abril de 1982, lia-se, no famoso Jornal de Notícias: “O cancro dos homossexuais”. Em outubro de 1983, foi diagnosticado o primeiro caso de HIV em Portugal.
Questiona-se: qual a origem desse preconceito? Os primeiros casos oficiais tiveram origem nos Estados Unidos da América, na população homossexual, nos primórdios da década de 80. No entanto, de salientar que até hoje ainda não está bem clarificado o surgimento da doença, e que há cientistas que apontam para que já na década de 50 se pudessem registar casos do vírus do HIV em pessoas não homossexuais. Aliás, em 2013, há estatísticas que indicam que o modo de transmissão do vírus mais frequente em Portugal, nesse ano, foi o contacto heterossexual, correspondendo a 61% dos casos. Pessoas heterossexuais, sobretudo homens, também têm tendência a serem diagnosticadas mais tarde do que pessoas homossexuais. Ou seja, pode concluir-se que o HIV/SIDA não é uma doença exclusiva de determinada orientação sexual, nem de determinado género. O vírus não olha às características físicas, pessoais e fisiológicas.
Mesmo assim, o preconceito era tanto, que havia quem pensasse em batizar a doença como “GRID” (Gay Related Immune Deficiency), que em português corresponderia, de grosso modo, a algo tão tenebroso como: Deficiência Imunitária dos Gays. Por essa razão, muitos dos homossexuais que viriam a ser diagnosticados com a doença, em vez de tentar combatê-la, acabaram por se submeter às drogas, viver em segredo ou, em alguns casos, cometer suicídio.
José Maria Fernandes Marques, artista plástico português, relatou para um livro o seguinte:
“Lembro-me de um rapaz, um estilista muito bonito que ia ao Trumps [no Bairro Alto], que quando soube que estava com SIDA enforcou-se em casa. Não havia nenhum cenário de cura, e as pessoas ficavam aterrorizadas. Foi um balde de água fria para muita gente. As pessoas estavam habituadas a ter sexo livre, mas, afinal, isso levava a que ficassem doentes. Também havia homens casados que tinham relações fora de casa e contaminavam as mulheres. Foi uma fase muito difícil.” – Em Os Maiores Sobressaltos em Portugal, de Pedro Prostes de Fonseca, 2019, Oficina do Livro (excerto)
Independentemente de já ser possível viver uma vida relativamente normal sendo portador da doença na década em que nos encontramos, e apesar de até então já se ter comprovado de diversas maneiras a não exclusividade do vírus por pessoas homossexuais, a realidade é que este preconceito homofóbico se verifica inclusive na nossa legislação portuguesa. Só agora em 2021, é que está a ser discutido no Parlamento a possibilidade de não haver discriminação dos dadores de sangue consoante a sua orientação sexual e identidade de género. Sim! Em 2021, tem-se vindo a registar frequentemente testemunhos de vários jovens homossexuais que viram negada a sua vontade de doarem sangue, exclusivamente com base na sua orientação sexual “por integrarem uma subpopulação com um risco infecioso acrescido” (o que, novamente, tem vindo a ser desmentido e relativizado). De realçar, inclusive, que a nossa CRP é clara quando refere, no seu artigo 13.º, que ninguém poderá ser prejudicado em função da sua orientação sexual. Não será inconstitucional negar um direito deste calibre a alguém com base na sua orientação sexual, ainda que numa (fraca) tentativa de arranjar alguma justificação lógica?
Estatisticamente, embora ao nível interno se tenha registado avanços significativos desde o primeiro diagnóstico, a realidade é que o nosso país não está muito bem posicionado internacionalmente no que diz respeito a este tema. A agravar, com a pandemia do COVID-19, só teremos o próximo relatório sobre o VIH em Portugal em 2022. Aliás, Portugal não sabe ao certo quantos casos de VIH surgiram no ano de 2020, sendo o único país da União Europeia nesta situação, por supostos problemas informáticos. O mesmo se diga acerca de 2021. Por essa razão, reportar-me-ei apenas aos dados até ao ano de 2019.
Ao nível interno, em 2019, registaram-se 778 novos casos de infeção por VIH (menos 331 do que em 2018), notificados 172 novos casos no estágio de SIDA e um total de 197 óbitos. No que diz respeito ao paciente em si, a idade média de diagnóstico foi de 38 anos, sendo a maioria do sexo masculino (69.3%). A taxa de novos diagnósticos mais elevada observou-se no grupo etário 25-29 anos. Cumulativamente, até 31 de dezembro de 2019 foram identificados, em Portugal, 61.433 casos de infeção por VIH, dos quais 22.835 atingiram o estádio de SIDA. Tudo isto significa que, em Portugal, há uma tendência para o decréscimo em 47% do número de novos diagnósticos de infeção por VIH e de 65% nos casos que se encontram no estádio SIDA.
Independentemente deste panorama positivo, como se pode observar no gráfico, em 2016, Portugal foi claramente dos países da Europa com mais mortes por cada 100.000 habitantes, registando em média mais do que um óbito neste conjunto.
Ao nível da União Europeia, o cenário não melhora, levando o nosso país o título de, em 2018, ser o segundo país da União em que a SIDA mais mata. Em 2017, morreram 134 pessoas infetadas com SIDA. Apenas a Roménia ultrapassa este valor, com 170 óbitos no ano referido.
Então, a conclusão é clara: apesar de Portugal mostrar sérios avanços no combate à doença, estes esforços parecem não ser suficientes para acompanhar os restantes Estados-Membros da União, e os próprios países da Europa em geral. É necessário testar e informar mais.
Neste momento, temos vindo a combater uma nova pandemia. Todavia, continua a existir sobre nós um dever objetivo de cuidado de combate a esta outra pandemia, com já quase quatro décadas de existência, e que já culminou milhares de vidas em Portugal.
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