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Foto do escritorClara Castro

Sleepers (1997) e a decisão certa

Nota: este texto foi originalmente redigido em inglês como parte da disciplina “Law and Literature” frequentada na Pázmány Péter Catholic University (Budapeste), durante o programa Erasmus.


As decisões éticas podem nem sempre ser corretas de acordo com a lei, mas ainda assim sê-lo de acordo com as circunstâncias é o que se argumenta no clássico realizado por Barry Levinson, explorando uma temática intemporal.


Baseado no best-seller de Lorenzo Carcaterra, "Sleepers" é a história de quatro rapazes que cresceram em Hell's Kitchen, Nova Iorque, no final dos anos 60 – “um lugar de inocência regido por violência, segundo a voz-off (o personagem Lorenzo „Shakes” Carcaterra). Numa idade decisiva, John Riley, Tommy Marcano, Mike Sullivan e “Shakes” vivem cercados de criminosos num bairro onde todos se conhecem, o que inevitavelmente leva a que também eles se envolvam em pequenos furtos. Todavia, uma das suas partidas tem sérias consequências e com apenas 14 anos são enviados para um reformatório. Em Wilkinson Home for Boys, Upstate New York, um guarda sádico, Sean Nokes – juntamente com alguns dos outros guardas – abusam sexualmente dos rapazes durante o ano que se segue.


Treze anos mais tarde, encontramos os quatro protagonistas já adultos, sendo que nenhum conseguiu ainda ultrapassar o horror da sua experiência no reformatório. Na realidade, John e Tommy tornaram-se assassinos contratados, Mike é um procurador distrital assistente emocionalmente instável, e “Shakes”, aparentemente o mais bem instalado do grupo, é um aspirante a repórter de jornal.


Tudo muda quando Tommy e John se cruzam com Sean num bar, decidindo quase instantaneamente matá-lo, ignorando a presença de testemunhas. Depois de detidos e acusados de homicídio, é Mike o procurador a quem o caso vem a ser atribuído, surgindo assim a oportunidade perfeita para os quatro rapazes “fazerem justiça com as próprias mãos”. Mike e “Shakes” unem-se neste propósito preparando um plano que liberte os seus companheiros, ao mesmo tempo que procuram vingar-se dos demais guardas.


Para obter a absolvição dos arguidos mostra-se decisivo o depoimento do padre Bobby, uma referência moral na comunidade e o único, para além de uma amiga de infância, a quem eles revelaram os abusos; para tal, o padre é levado a mentir no seu testemunho. Os restantes guardas acabam também por sofrer as consequências dos seus crimes: Henry Addison, agora um político que ainda abusa de crianças, é raptado e morto por black gangsters liderados pelo irmão mais velho de Rizzo, um rapaz do reformatório espancado até à morte pelos guardas; Adam Styler, agora um polícia corrupto, é preso por aceitar subornos e assassinar um traficante de droga; Ralph Ferguson, um assistente social, perde o emprego e a família.


O filme termina com a sugestão controversa de que é uma vitória manipular o sistema de justiça para ilibar “alguns assassinos”. É aqui que diferentes tipos de questões emergem, à luz da dicotomia moralidade/legalidade.


Ora, por um lado, a absolvição de homens culpados sucede essencialmente devido a uma decisão ética – a decisão do padre de testemunhar, servindo como álibi para os arguidos. Na verdade, todos nos deparamos com decisões éticas em algum momento – o ponto decisivo é saber se as escolhas que fazemos merecem que comprometamos os nossos valores. Neste prisma, é possível concluir que o padre tomou a decisão certa, mesmo que perante a lei essa seja uma decisão errada e punível como crime de falsidade de testemunho. A este propósito interessa notar que o padre Bobby foi ensinado a não colocar ninguém acima das “leis de Deus”, que claramente condenam tanto o homicídio como a vingança, até porque «dois errados não levam a um certo». Ainda assim, a sua preocupação pelos jovens acabou por pesar mais do que os seus valores-base: I know what they were, and I know what they are and it's not about that.”.


Noutra perspetiva, importa perceber se as ações dos rapazes encontram respaldo moral. É que mesmo estando inclinados a simpatizar com os quatro amigos pelo sofrimento que enfrentaram às mãos dos guardas, temos por certo que fazer justiça no caso nunca poderia passar por cometer outra ofensa e violar a lei.


Por outro lado, merece destaque o papel da vingança na reunião de Tommy, John, Mike e “Shakes” que até ao assassinato de Nokes tinham seguido caminhos distintos, reavivando inclusive as amizades do passado - “Revenge is not a selfish emotion, and a revenge ethos breeds powerful family and small-group loyalties”, dizia já Posner em Revenge as Legal Prototype and Literary Genre.


Do ponto de vista sociológico, por trás desta busca de vingança, há ainda uma construção social de masculinidade orientada pela fisicalidade, violência e repressão emocional que inquestionavelmente moldou a sequência de acontecimentos desde o início. Sleepers” ilustra um mundo ainda regido pela ideia “boys don’t cry”, vedando ao sexo masculino uma livre expressão de personalidade. Veja-se que “Shakes” e os amigos foram violados e torturados, mas nada disseram sobre os abusos até ao momento do julgamento de John e Tommy; e fazem-no apenas porque precisam de persuadir o Padre Bobby a testemunhar. Em última instância, essa libertação tardia culmina numa explosão de violência e na crença de que a única maneira possível de apagar o sofrimento experienciado é matar os responsáveis.


Aqui chegados, resta-nos a mensagem transmitida pelo título – os perigos de uma sociedade adormecida (“a sleeping society”).


Efetivamente, antes da vingança homicida de Tommy e John, várias pessoas poderiam ter comunicado às autoridades os crimes cometidos no reformatório. Porém, ninguém o fez e essa passividade levou à impunidade dos guardas abusadores. Fica a questão: como e quem pode fazer justiça nestes casos? A resposta sugerida pelo filme é a de que apenas as vítimas estão dispostas a fazê-lo – a sociedade dorme e, por isso, cada um é responsável por si e pelos que estão por perto.


Este é, pois, um filme polémico que nos deixa um apelo inquietante: não “durmas”, porque a tua inação pode levar a novos crimes.


Clara Castro

Departamento Cultural


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