No passado dia 21 de outubro, a banda britânica Arctic Monkeys disponibilizou o seu mais recente álbum, The Car1. Perante as críticas recebidas na obra que o antecedeu, Tranquility Base Hotel & Casino, Alex Turner adota o mesmo estilo num diferente contexto – foge da ficção espacial e aproxima-se da dimensão térrea.
Antes de passar para a análise propriamente dita, o autor sente a necessidade de prestar dois esclarecimentos:
Em primeiro lugar, é essencial explicar o sistema de análise utilizado: ora, na minha perspetiva, torna-se altamente redutor recorrer às tradicionais numerologias – quer por ser injusto para as obras em causa, quer por ser um método limitado e inadequado; afinal, como se pode sintetizar algo subjetivo (a arte) de acordo com uma estrutura objetiva?
Deste modo, apresento-vos uma lógica que assenta em pequenas descrições, cujo vigor será fortalecido pelas munições dadas ao longo do artigo. Exemplifico:
Execrável – uma obra que nunca deveria ter existido, que é capaz de sensibilizar o mood de cada um de nós de forma negativa;
Péssimo – alguma coisa decerto correu mal - não se percebe a sua feitura e disponibilização;
Mau – pode, quiçá, ser recheada de boas intenções, conquanto essas se concretizaram nalgo que não resultou e, inevitavelmente, prejudicou a experiência global;
Medíocre – não é boa, nem má: existe, mas talvez não tenha sido pensada efetivamente;
Acima da média – revela-se uma obra de qualidade superior no seu âmbito, pese embora não atinja o necessário para constituir o elenco supremo nesse mesmo;
Muito bom – é, sem sombra de dúvidas, uma referência – indubitavelmente, situa-se nos píncaros do seu género, e proporcionará uma experiência estonteante e elegante aos seus apreciadores;
Excelente – não se trata, somente, de uma obra de elevadíssima qualidade; constitui uma revolução, o topo da cadeia artística.
Em segundo lugar, abro as portas para os caríssimos leitores conhecerem a minha ótica relativamente aos últimos álbuns do conjunto de Sheffield. Admirei e admiro, inalienavelmente, os dois primeiros discos — Whatever People Say I Am, That’s What I Am Not e Favourite Worst Nightmare —, vejo mediocridade em boa parte (Humbug e AM) e rejeito plenamente os que daqui restam (Suck It and See e Tranquility Base Hotel & Casino). Daqui advém que, no prisma idiossincrático de quem aqui escreve, exista um histórico recente de desilusão; pode, por isso, o leitor assumir que esta será uma análise parcial, parca em argumentos e dotada de incompetência.
Nada será mais falso: é certo que é impossível não ouvir o nosso âmago, isto é, ponderar cada elemento com os nossos gostos, com os nossos biases. Não obstante, também é certo que, enquanto redator, pretendo não só expor o meu discernimento, como, igualmente, dar a oportunidade a cada um de vós de redigir a própria suma.
Assim estabelecidos os alicerces, doravante prossegue-se a análise propriamente dita.
The Car começa com a faixa There’d Better Be A Mirrorball, que apresenta uma introdução bastante peculiar e intrigante, claramente influenciada por jazz. Profundamente excêntrica, soa como uma balada do início de carreira de Prince. À medida que nos aproximamos do final, reconhecemos a sua beleza extraordinária, permanecendo envolvidos numa atmosfera de um tempo de outrora, ou que, quiçá, nunca tenha existido.
Seguimos nesta viagem com I Ain’t Quite Where I Think I Am – oh!, que harmonização excelente, que instrumental incrível. O tom orquestral encaixa de um modo perfeito, tal como os vocais de Turner, que, à semelhança de um bom vinho do Porto, vão se tornando melhores conforme a idade avança. A estrutura desta canção não é convencional; isso dá-lhe charme. No entanto, talvez falte algo: um clímax.
E com este «quase», aproxima-se Sculptures Of Anything Goes. Para o redator, surgem aqui os primeiros pontos baixos do álbum, na medida em que a lírica da música representa algo demasiado abstrato. Note-se isto: a minha pessoa admira aquilo que é o abstrato, pelo que, na verdade, a mensagem aqui não seja, por hipótese, claramente abstrata e sim uma combinação de frases sem sentido, que acabam por firmar uma ideia que não se substancia pela pertinência. Ora, em dissonância com o parecer dominante, nunca advoguei que Alex Turner é um poeta, conquanto alguém que influenciou uma geração. Falta isso. Faltam as frases que nos marcam, as experiências que partilhamos.
Jet Skies On The Moat é muito parecida à segunda faixa deste disco – influência funk nítida, estrutura extravagante, entre outros. Bem, só não partilha a homogeneidade na qualidade: é uma música que se repete muito, e a sua lógica, pese embora diferente, é a mesma ao longo dos três minutos e dezessete segundos.
O sentimento até Body Paint era de predominante desilusão. Felizmente, isso muda: esta canção situa-se nos píncaros da obra. Uma vasta influência de estilos — desde a produção, que lembra a de George Martin no trabalho de The Beatles, até ao inconfundível material de David Bowie nos anos 70 —, juntamente com um instrumental vivo, recheado de cores, e uma progressão ótima. Sentimo-nos novamente no ambiente onde o conjunto britânico nos pretende inserir; afinal, basta uma transição boa, vocais com emoção e um solo simples e agradável para provocar ao ouvinte uma sensação boa. Ademais: enfim um clímax!
É impossível que os Arctic Monkeys tenham lido este artigo; não obstante, parece que seguiram as impressões do parágrafo anterior e continuaram o bom trabalho. The Car representa uma certa mudança de paradigma, mantendo o instrumental lindíssimo. É, indubitavelmente, daquelas músicas que emocionam através da melodia, com influência clara de Pink Floyd e de Velvet Underground.
Com Big Ideas, o álbum volta a cair nos mesmos erros — sim, a produção é boa, e registamos com apreço a marca de Bowie aqui. Mas falta alguma criatividade. Mas falta coesão. Mas falta um apogeu. E, bom, são demasiados «mas» para salvá-la da falta de empatia de quem escreve este artigo.
Groovy, groovy – Men at Work ou Arctic Monkeys? Veja-se com clareza e constância: não abomino a mudança. Mudança, por si só, não é má. No entanto, tal como não se coloca Lionel Messi a adotar a posição de defesa central, a banda de Sheffield também não deveria enveredar pelos caminhos do movimento New Wave. Por infortúnio, é precisamente isso que acontece em Hello You. O resultado? Uma faixa que se estende demais e atinge a fronteira do inaceitável.
Pelo menos em Mr Schwartz, aposta-se em algo diferente. Turner absorve as experiências dos filmes de Godard e retira inspiração das composições de génios como Lai, Rota e Legrand. Independentemente disto, a música decerto não merece lugar de destaque na Nouvelle Vague.
Finalizamos com Perfect Sense — em abono da verdade, não há muito a dizer. É um final curto e simples que reflete sobre a efemeridade da vida e do sucesso. Bem assim, também é um final que faz o redator refletir sobre este álbum, fazendo-o chegar a uma conclusão que pode não agradar.
Pois bem, deixar-me-ão, com a tolerância característica dos leitores deste nobre Jornal, explicar a minha perspetiva: nem o álbum é tão bom como os críticos fazem parecer, nem tão mau como alguns dos fãs mais ferrenhos alegam.
The Car é superior ao álbum anterior. Ponto. Tranquility Base Hotel & Casino sofre de um problema: o monopólio de Alex Turner. Aqui, apesar dos aspetos negativos, conseguimos ver que é um trabalho de equipa.
There’d Better Be A Mirrorball, Body Paint e The Car são algumas das melhores faixas que a banda disponibilizou em anos. Isso é motivo de júbilo. Por outro lado, Hello You e Mr Schwartz são das piores.
É admirável que os Arctic Monkeys cultivem a liberdade e a criatividade através desta mudança de paradigma. Sem embargo, a verdade é que, na música e na vida, temos de crescer – e é aqui que o conjunto britânico falha. Quer somos apresentados a músicas de elevada qualidade, quer somos introduzidos a faixas monótonas e sem brilho. Quer reprimem vícios do disco anterior, quer os repetem incessantemente.
Na sua crítica ao álbum, ao qual atribuiu classificação máxima, a NME2 descreve-o como «quase fatigante em termos de ambição e dimensão, mas fornece motivos vários para o revisitar vezes sem conta». Ora, não podia estar mais em desacordo: à exceção das canções enfatizadas anteriormente, The Car não apresenta relevância tal que lhe permita ecoar nos ouvidos do público em geral ou mesmo dos fãs.
Por outro lado, e na esteira de Anthony Fantano3, afirma-se o seguinte: Alex Turner é o principal responsável pelos defeitos deste álbum. Ao frontman, faltam o carisma, a emoção, os vocais e a honestidade necessárias para emplacar um disco deste género. E, ao contrário do crítico americano, considero que a banda tem tudo para fazer algo competente no escopo a que se propõe: Turner, a título de exemplo, marcou, mediante a sua lírica, uma geração inteira com a sua faceta de Sheffield. Destarte, não se percebe o pedantismo aparente das suas composições atuais. Ademais, e tocando novamente nessa tal faceta de Sheffield – quiçá os sentimentos que a mesma transmitia fossem essenciais para a bonança de The Car, mesmo que os vocais do mesmo estejam melhores hodiernamente.
Estonteante na sua instrumentalização, arranjos e produção, a verdade é que The Car é um carro ambicioso preso num elevador pretensioso. Dos Arctic Monkeys, espera-se muito mais – no próximo lançamento, aqui estarei para o avaliar devidamente e, porventura, conferir virtudes inigualáveis.
CLASSIFICAÇÃO: MEDÍOCRE
João Vilas Boas
Departamento Cultural
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