Algures no início do século XXI, toda a humanidade se juntou para celebrar o nascimento da inteligência artificial, uma consciência única que deu à luz toda uma nova raça de máquinas. Falo do filme The Matrix (1999), mas sabe-se que a vida imita a arte.
Nos dias em que vivemos, cada vez mais as máquinas substituem as pessoas, para o bem e para o mal, e pese embora o benefício que tal possa trazer à humanidade e ao seu desenvolvimento, a verdade é que a problemática levanta questões incontornáveis, especialmente no que diz respeito à Inteligência Artificial, doravante IA.
Antes de mais, o que é, ao certo, IA? Citando o Parlamento Europeu (PE): é a capacidade de uma máquina para reproduzir competências semelhantes às humanas como é o caso do raciocínio, a aprendizagem, o planeamento e a criatividade. Naturalmente, este fenómeno traz imensas vantagens, que o próprio PE considera primordiais para a transformação digital da sociedade, tendo-se tornado, segundo o PE, numa prioridade da União Europeia. Com efeito, verificamos “migalhas” de IA em praticamente tudo o que fazemos no dia-a-dia, desde a IA relativa aos softwares, como as assistentes virtuais, os motores de busca e os sistemas de reconhecimento facial e de voz, até à IA incorporada em hardware como robôs, carros autónomos, drones e todas as aplicações que caem no domínio da Internet das Coisas, isto é, uma forma de conectar objetos físicos entre si e se comunicar com os usuários por meio de sensores inteligentes e software que transmite dados para a rede, posto simples.
Pergunto-vos: quando foi a última vez que não se serviram das inúmeras vantagens da IA? Não damos conta sequer de que é isso que estamos a fazer, seja quando desbloqueamos os nossos telemóveis, perguntamos à SIRI qual é a música que está a dar, ou quando traduzimos um artigo importante para estudar para o exame que está numa língua que não percebemos. A verdade é que nos parecem fúteis, estas atividades que realizamos com o auxílio da IA, mas o seu poder alarga-se a muitos outros campos que poderíamos concordar no que toca à sua importância. É a IA que ajuda a reconhecer e combater os ataques e outras ameaças cibernéticas, é a IA que combate a desinformação através do controlo das informações publicadas nas redes sociais, procura de palavras e identificação de fontes. É inclusive a
IA que ajuda no combate à Covid-19, por exemplo, com sistemas de controlo térmico nos aeroportos. É inegavelmente algo bom, e algo que poderia ainda melhorar. O PE diz-nos que os avanços da IA podem auxiliar na área da saúde, ao analisar grandes quantidades de dados e encontrar padrões que possam levar a novas descobertas em medicina; nos transportes, ao melhorar a segurança, a velocidade e a eficiência dos mesmos; e até a alimentação e agricultura, com a criação de um sistema alimentar sustentável na União Europeia, entre muitos outros aspetos apontados.
Apesar de todos os desenvolvimentos da IA – e desejo que a mesma continue a evoluir – Luís Lóia, Docente na Universidade Católica, diz-nos que um dos dilemas éticos fundamentais com que nos confrontamos hoje, no que diz respeito aos sistemas de IA, é a incapacidade de não só prever o desenvolvimento que esse processo de "aprendizagem" poderá ter, mas sobretudo a incapacidade de responsabilização perante o erro que daí possa resultar. Nesta lógica, o PE criou uma comissão especial para analisar o impacto desta tecnologia, e, apesar de todas as vantagens enumeradas previamente, a verdade é que surgem ameaças e desafios com a IA, derivados da subutilização e utilização excessiva da IA.
Posto isto, um claro exemplo das desvantagens da IA é o facto de a mesma constituir ameaças aos direitos fundamentais e à democracia, quando nos deparamos com algoritmos discriminatórios e racistas – sistemas de reconhecimento facial já foram utilizados para calcular e justificar a prisão de homens negros, cuja inocência, eventualmente, se comprovou; outro exemplo será a multiplicidade de vezes que sites de imagens rotulam imagens de pessoas negras com “macacos” ou “gorilas”, ou quando uma procura por “cabelo feio” nos oferece imagens de mulheres negras como ilustração da pesquisa.
“Já houve casos em que algumas pessoas foram “injustamente tratadas” devido ao uso da IA, por exemplo, sendo-lhes negados subsídios sociais ou sendo detidas em consequência de erros nos sistemas de reconhecimento social”; “Os dados que alimentam e orientam os sistemas de IA podem ser deficientes, discriminatórios, obsoletos ou pouco relevantes (…) podem conduzir à adoção de decisões discriminatórias, um risco ainda maior em grupos que já se encontram marginalizados.”
Continuando, temos riscos para a segurança, isto porque as aplicações de IA podem estar mal concebidas, ou podem até ser hackeadas, originando assim um mau uso, uma transformação da IA em arma, inclusive, e isto leva-nos à questão da responsabilidade: quem é responsável pelos danos causados pela IA?
Um caso nos Estados Unidos da América, no qual uma mulher morreu às mãos de um veículo automático de teste da Uber, viu a responsabilidade da morte da cidadã ser distribuída pela Uber, pois o software estava mal concebido, pela condutora de segurança que seguia no veículo, pese embora a assistir ao programa “The Voice”, ao Governador do Arizona, pelas políticas públicas de salvaguarda insuficientes e pela própria vítima, por atravessar uma estrada que não podia atravessar – mas e o carro? O carro não foi considerado culpado, não pode ser considerado culpado, não tem personalidade jurídica, terá sequer personalidade?
Pese embora a sua utilidade, a facilidade que providência aos seres humanos, até que ponto será isto mais benéfico do que o contrário para a sociedade? Brincamos com o fogo ao dotar máquinas de inteligência, acabando as mesmas por dispor de capacidades por vezes superiores às nossas. Continuamos em busca de desenvolvimento, de mais e melhor, enquanto deixamos questões éticas e morais pelo caminho.
2199, a raça humana vive em cápsulas, ligada pelo cérebro a um mundo virtual, nada mais do que energia para máquinas. Falo do filme The Matrix (1999), mas sabe-se já que a vida imita a arte.
Muito interessante toda a informação disponibilizada pelo artigo. Realmente, deixa-nos a pensar nas consequências das evoluções tecnológicas que tanto nos beneficiam e consideramos essenciais. Um artigo muito importante e atual! Parabéns à autora e ao Jornal Tribuna por esta leitura excecional!