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Foto do escritorAna Neri Moreira

The Monuments Women ou Le Donne dei Monumenti (parte 2):Palma Bucarelli e a Galleria Nazionale di Arte Moderna em Roma



Soberba, “de uma beleza arrebatadora”, Palma Bucarelli nasce na Urbs Aeterna a 16 de março de 1910, filha de Giuseppe Bucarelli, alto funcionário do Estado, e Ester Loteta Clori. Durante toda a sua infância veraneia em Caprarola, Viterbo, com a sua família — é lá que, enquanto pinta postais do Palazzo Farnese, descobre o gosto pela arte. 


Ao longo da década de 20, Palma Bucarelli frequenta as melhores bibliotecas de Roma, verdadeiros salotti literários e culturais, exclusivos e elegantes. Conclui a "Laurea" em História da Arte na Sapienza, onde foi aluna de Adolfo Venturi e Pietro Toesca e, com apenas 23 anos, entra na Administração do Estado, primeiro na Galleria Borghese.


Entretanto, a ditadura de Mussolini “Il Duce” instala-se: enquanto a mulher do ideário fascista — a mãe prolífica — era incentivada a permanecer no lar, Palma Bucarelli conduz mais de 200km por dia, visitando todo o Lácio com o seu automóvel e um meticuloso plano de visita a igrejas, arquivos, monumentos e sítios arqueológicos, que estuda com rigor. 


Em 1939, os homens partem para a guerra que acabara de eclodir na Europa, com a invasão da Polónia: Palma Bucarelli integra a Superintendência das Galerias e Obras de Arte da Campânia, primeiro como inspetora e, depois, no verão de 1941, como superintendente da Galeria Nacional de Arte Moderna (GNAM) em Roma. Ora, em 1941, já todos os outros museus italianos tinham escondido as suas coleções há mais de um ano — cabe a Bucarelli a desafiante tarefa de, numa verdadeira corrida contra o tempo, salvaguardar todo o enorme acervo da GNAM. Propõe ao ministro o “seu” Palazzo Farnese de Caprarola, uma antiga fortaleza militar, e passa os meses seguintes nas reservas do Museu a arquivar e embalar as 672 peças que seguiram, logo em novembro, numa azáfama de camiões para fora de Roma. Só o colossal Hércules, de Canova, em mármore, permanece no edifício da GNAM, guardando a sala desde  o fortificado de madeira onde o tentam proteger.


A 25 de julho de 1943, os italianos festejam a queda de Mussolini como se fosse o fim da guerra, mas o pior ainda estava para vir: os bombardeamentos aliados multiplicam-se e a frente de guerra aproxima-se do centro de Itália, entretanto os alemães acumulam obras de arte saqueadas. Já nenhum lugar é seguro, nem mesmo o Palazzo Farnese em Caprarola. 

Entre setembro e fevereiro, o Papa Pio XII coloca à disposição o Castel Sant’ Angelo, e os fundos e autorizações para o transporte das obras chegam do ministério. 


Porém, Palma está oficialmente fora de serviço: Mussolini chamara a Pádua os superintendentes da República de Salò, sob pena de suspensão do cargo e do salário. Bucarelli havia rejeitado a ordem e permanecera em Roma sob a ocupação alemã, pelo que tem, então, de efetuar esta operação em segredo: durante os longos meses frios de inverno, com escassos fundos e percorrendo estradas bombardeadas, as obras são improvisadamente transportadas durante a noite, acompanhadas do constante terror de expor o comboio aos bombardeamentos ou às autoridades alemãs.




Durante esse  tenebroso tempo em Roma, quase todos os amigos de Palma Bucarelli estão na lista negra dos alemães e vivem na clandestinidade, com falsas identidades. Verdadeiramente digna de uma cena de cinema, Bucarelli — com o tailleur cintado verde militar, o seu grande cabelo loiro e os seus olhos verdes — percorre a cidade na sua bicicleta, transportando no seu cesto comida para os seus amigos e panfletos antifascistas, que, durante a noite, distribui pelas caixas de correio ou pendura nas árvores da Villa Borghese.


Em junho de 1944, Roma é livre. “A felicidade não tem limites”, escreve Bucarelli. Chegava, então, o tempo de pôr mãos à obra: logo em dezembro do mesmo ano, a GNAM reabre ao público — tornando-se o primeiro museu público a fazê-lo no pós-guerra!


É a partir daqui que Palma Bucarelli, que entretanto se havia mudado para um apartamento dentro do próprio museu, começa a definir uma nova era para a GNAM: uma era marcada por uma visionária política de aquisições e que verá Roma tornar-se o centro cultural de Itália durante vinte anos, um ponto de encontro para artistas e escritores de todo o mundo. 


Em 1945, Bucarelli consegue que dois quadros de Morandi, uma paisagem e uma natureza morta, fossem doados à Galeria. Seguiram-se doações e aquisições de obras de pintores internacionais como Mondrian, Modigliani, Moore, Pollock, Malevich, Kandinsky e de artistas italianos como Burri, Colla, Caporossi, Fontana, Pascali, Novelli e Manzoni. Estas doações e aquisições são escolhas corajosas, sempre contestadas pela elite romana, muito conservadora. Aliás, em 1959, após a exposição de Il grande sacco, de Burri, Bucarelli chega a ser chamada para um inquérito parlamentar. 


Ao longo de toda a sua vida, grande parte dela dedicada à GNAM, Bucarelli destacar-se-á pela sua extraordinária erudição, fruto de estudo profundo — o que hoje comprovamos quando lemos os seus diários, os seus manuscritos ou os seus livros apontados —, mas também pelo seu gosto, a sua intuição e as relações que criava, visitando os “salotti” culturais tão típicos da capital italiana, os ateliers dos artistas e as novas galerias de arte da capital romana. 


Palma Bucarelli consegue levar a arte italiana para o mundo e “abrir os olhos de um país conservador e retrógrado às novidades das vanguardas internacionais com a coragem de inovar, o gosto de transgredir”(Serena Dandini, in Paladine, Direzione Musei del Ministero Italiano della Cultura, 2021). Consegue trazer os romanos à galeria: com as 182 peças da coleção Cavallini, pôs este público pela primeira vez em contacto com as novas correntes artísticas de Picasso, Kandinsky, Mondrian ou Modigliani. Note-se, em 1958, organiza-se na GNAM a primeira grande exposição europeia dedicada a Jackson Pollock!


Palma Bucarelli permanecerá à frente da GNAM até 1975, deixando na Galeria (e na História da Arte) a sua marca indelével. Hoje, ao visitarmos a GNAM, deparamo-nos com um museu vivo e irreverente, onde as obras se relacionam inesperadamente (e às vezes inexplicavelmente) em constantes desafios e convites ao espectador.


Ana Neri Moreira

Departamento Cultural


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