Fernanda Wittgens nasce em Milão a 3 de abril de 1903, filha de Adolfo Wittgens, professor de Literatura e um verdadeiro homem do Risorgimento, que, todos os domingos, a levava a si e aos seus seis irmãos a visitar os museus da Lombardia.
Licencia-se em 1925, sob a orientação de Paolo d’Ancona, com uma tese di laurea sobre história da arte medieval e moderna classificada con lode. Apenas três anos depois, num momento descrito pela historiadora Giovanna Ginex como “absolutamente fundamental na história contemporânea de Milão”, Mario Salmi, ispettore da Pinacoteca di Brera, apresenta Wittgens a Ettore Modigliani, diretor da Pinacoteca e superintendente das Galerias da Lombardia. Foi imediatamente contratada como assalariata, tornando-se, porém, logo em 1931, assistente “faz tudo” de E. Modigliani.
Ao longo da década de 30, o contexto político italiano altera-se. Em 1935, E. Modigliani é expulso dos cargos que desempenhava por acusações de “anti-fascismo” e, com a entrada em vigor das leis raciais de 1938, o mentor de Wittgens (de origem judaica) fica ainda impedido de desempenhar qualquer cargo na função pública e de publicar em seu nome — um aspecto das leis raciais do qual poucas vezes se fala mas que, para qualquer investigador, era extremamente violento.
Em agosto de 1940, Fernanda Wittgens vence o concurso e é nomeada diretora da Pinacoteca di Brera (note-se, é a primeira mulher em Itália a ser diretora de um grande museu ou galeria). É também neste ano que Itália entra na Segunda Guerra Mundial. A salvaguarda do acervo do museu torna-se uma dramática prioridade. Wittgens orienta então, a saída das obras sinalizadas como ilustri. São transportadas durante a noite em 32 carruagens de um comboio militar para locais resguardados como os espaços subterrâneos tanto da Cassa di Risparmio delle Province Lombarde, como do Castello Sforzesco. Algumas obras seguem para longe de Milão, como para a Villa Fenaroli, em Seniga d'Oglio, e a Villa Marini Clarelli, em Montefreddo, perto de Perugia, em percursos extremamente arriscados (inimagináveis em tempos de paz) que chegam a demorar 5 dias, entre comboios e carrinhas, às vezes até descobertas.
Até 1943, com o desenrolar da guerra, as obras vão sendo transferidas dos “esconderijos” iniciais para outras villas e fortalezas em Marche, depois Orvieto, depois Urbino. Para todos e cada um de estes trajetos em que tinha de viajar para fora da região, era exigido a Wittgens, por ser mulher, que obtivesse uma autorização especial do Estado.
Na sequência de um bombardeamento na noite de 7 para 8 de agosto de 1943, 15 bombas incendiárias e cerca de 250 fragmentos incendiários caíram sobre todo o edifício — 26 das 34 salas foram reduzidas a pó. O majestoso edifício fica irremediavelmente danificado, as obras, porém, graças ao trabalho visionário de Wittgens (bem como de E. Modigliani e Guglielmo Pacchioni), estão a salvo. O trabalho hercúleo começaria em setembro do mesmo ano, depois da assinatura do armistício: o território bresciano, proclamado sede da República de Salò, tornara-se extremamente perigoso. É desencadeada uma verdadeira odisseia de viagens e deslocações, envolvendo mais de 20 abrigos provisórios, na busca incessante por locais seguros, tanto quanto possível a noroeste da península, como nas Ilhas Borromeias, na Valtellina ou nas margens do Lago de Como.
Ainda que com o pessoal reduzido ao seu “esqueleto” (recorde-se que a maioria dos homens estava nas frentes de batalha), com meios muitas vezes improvisados e com os frequentes bombardeamentos de Milão, a Pinacoteca foi cuidadosamente esvaziada e o objetivo foi alcançado: hoje, numa visita à Pinacoteca di Brera ainda usufruímos do privilégio de poder ver o Casamento da Virgem de Rafael, o Cristo Morto de Mantegna, a Cena in Emmaus de Caravaggio, entre tantas outras obras-primas.
Desde o começo da guerra, Fernanda Wittgens ajuda amigos e familiares judeus perseguidos que estavam expatriados. Em julho de 1944, é presa, considerada “inimiga do fascismo”, tendo sido, posteriormente, libertada em fevereiro de 1945.
Com a sua libertação e o fim da Guerra, chega o tempo de reconstruir a Pinacoteca di Brera. O projeto de reconstrução é confiado ao arquiteto Piero Portaluppi — depois de apenas quatro anos, a Pinacoteca reabria portas segundo uma nova filosofia, um imperativo categórico para Wittgens: para além de ampliar o espaço, o museu devia ampliar também o seu público, deveria nascer uma “Grande Brera”, um museu mediador da arte e da sociedade, didático e sempre vivo e do qual os milaneses são parte ativa. Em 1955 é, aliás, criada uma secção pedagógica do museu, prática muito pouco comum até à data.
Nunca abandonada a Pinacoteca di Brera, em maio de 1950, Fernanda Wittgens torna-se sovraintendente dos Museus e galerias da Lombardia.
Fernanda Wittgens morre em 1957. É uma figura absolutamente incontornável da história da arte do século XX, exemplo maior de compromisso e, sobretudo, de espírito de serviço público. A ela se deve não só a preservação do imenso património artístico lombardo, mas também a redefinição moderna do "museu", repensando-o como um espaço de inclusão e diálogo. Esta alteração de panorama, desencadeada também por Wittgens, é, como se pode hoje compreender, decisiva na reconstrução da identidade europeia do pós-guerra.
Ana Neri Moreira
Departamento Cultural
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