2003 foi um ano icónico, nem que seja apenas pelo facto de eu ter nascido. Dito isto, mesmo se desconsiderarmos este evento canónico, o ano de 2003 foi extremamente importante na cultura pop, principalmente na música. Numa altura em que a Beyoncé andava Crazy in Love, muitos (The White Stripes, Radiohead, Linkin Park...) produziam projetos intemporais. No entanto, se tivesse de nomear um género de música que prosperava há 20 anos, a minha resposta seria, sem hesitar, o hip-hop.
2003 foi um ano especialmente importante para a cultura hip-hop. O sucesso comercial que foi Get Rich or Die Tryin’ de 50 Cent levou o estilo para os ouvidos e bocas dos mais desatentos. Em paralelo, os Outkast ofereciam ao mundo Speakerboxxx/The Love Below, um projeto inovativo que rendeu ao duo um Grammy de melhor álbum. Isto tudo para dizer que, no ano de 2003, enquanto todos estes eventos decorriam, um miúdo em Compton, Los Angeles, usando o pseudónimo K-Dot, publicava a sua primeira mixtape: Y.N.I.C. (Hub City Threat: Minor of the Year); miúdo esse que, ao longo dos 20 anos seguintes, se tornou uma das pessoas mais respeitadas do mundo do entretenimento, fazendo jus aos inúmeros elogios e alcunhas que todos nós, comuns mortais, lhe imputamos.
“Kendrick Lamar Duckworth, ou apenas Kendrick Lamar, é um rapper, cantor, compositor e produtor americano”, ou pelo menos é isso que a Wikipédia nos conta. Todavia, para moi, Duarte, é muito mais do que isso: é um storyteller, um ativista, um pensador, uma companhia e, na falta de mais elogios, um génio. Posto isto, penso que já deu para perceber que sou fã do Kendrick. Na verdade, penso que foi o primeiro artista que realmente admirei e, por isso, desde há uns anos para cá que o acompanho religiosamente, tendo chegado até a gastar umas pérolas para o ver ao vivo este verão (pérolas bem gastas, diga-se). Pese embora um exercício de escrita em que tente arranjar novas formas de elogiar o colosso que é Kendrick Lamar não me pareça de todo desinteressante, não é esse o objetivo deste texto. Com este artigo, pretendo, acima de tudo, analisar aquele que, para muitos, é considerado um dos melhores álbuns de todos os tempos, To Pimp A Butterfly (TPAB), e explicar o porquê de este ser um dos projetos que mais impactou a minha vida.
Na sequência do lançamento de Good Kid, M.A.A.D City e de um tour internacional, “King Kendrick” tornou-se uma estrela do hip-hop. Os críticos já tinham avisado e a profecia cumpriu-se. Assim, no momento em que muitos vacilam, K-Dot prosperou e, após uma viagem inspiradora à África do Sul, em 2014, começou a estabelecer os alicerces do disco, contactando produtores e colaboradores, num esforço que, um ano mais tarde, culminou num dos projetos mais adorados da década.
“Mais do que um álbum” é uma das expressões mais usadas pelos críticos na descrição de To Pimp A Butterfly. De facto, TPAB preenche por excesso a definição de álbum: não é apenas música, é um olhar musical para o ser humano e para a sociedade, escrito a partir da perspetiva de alguém que sabe o que é estar no fundo e no topo da mesma. To Pimp A Butterfly é conhecido por tocar em temas sensíveis como o racismo estrutural e a discriminação cultural; no entanto, e sem querer tirar o mérito (que é imenso) a esta corrente que, de um certo modo, move o álbum, TPAB é muito mais do que isso: temas como ansiedade, depressão, amor próprio, resiliência, adição e saúde mental são peças fulcrais nesta odisseia musical.
Num projeto que abraça uma panóplia de géneros musicais, desde o hip-hop ao funk, passando pelo jazz, pelo soul e pelo spoken word, a musicalidade revela-se, definitivamente, uma das suas maiores qualidades. A verdade é que, se retirássemos todo o seu texto, este continuava a ser um dos melhores álbuns da década. A beleza dos arranjos, assim como a fusão entre instrumentos tradicionais e samples, ajudam a tornar este disco intemporal e mostram a dedicação que toda a equipa técnica teve durante os dois anos de escrita e produção, desde o próprio Kendrick aos inúmeros produtores como Sounwave e Thundercat.
O título que inicia esta viagem é Wesley's Theory, uma faixa que, através do seu incrível instrumental e um sample de bom gosto, marca o compasso para o que se vai seguir. Nesta canção, K-Dot aborda temas como a fama e o poder que a indústria do entretenimento exerce sobre os artistas, principalmente, sobre os afro-americanos. A seguinte faixa, For Free?, é o primeiro interlúdio do álbum e muda, em parte, o tom com um certo alívio cómico. Segue-se King Kunta, uma música mais comercial e que vai de encontro aos padrões tradicionais do hip-hop, onde Kendrick se diz rei do rap. A quarta faixa, Institutionalized, conta com participações especiais de Snoop Dogg, Bilal e Anna Wise e introduz um tom mais melancólico. Se antes o nosso personagem estava confiante devido à fama e sucesso, agora percebe que, mentalmente, nunca irá deixar o gueto onde cresceu, porque toda a gente se encontra institucionalizada, seja pelo medo, dinheiro, classicismo, racismo ou aprisionamento. A próxima música, These Walls, é um som mais sexy que aborda temas como sexo, fama e abuso através da metáfora que dá nome à canção. Aqui há ainda a continuação do sentimento de aprisionamento. u é o título seguinte e um dos mais polarizantes: é talvez o cut mais genial de todo o projeto, mas certamente não é para todos. Um Kendrick à beira do abismo afoga as mágoas no álcool e, às costas de sinfonias deprimentes e melancólicas e entoações inquietantes, grita e chora que falhou na vida e nunca vai ser ninguém. Encontramo-nos no ponto mais “baixo” do álbum e, como não há mais para descer, resta-nos olhar para cima e acreditar que tudo vai ficar bem. E é isso mesmo que a próxima faixa, Alright, nos transmite: uma mensagem de esperança.
O segundo interlúdio, For Sale?, segue este hino e volta a tocar nas tentações da vida de famoso e do “hip-hop lifestyle”. Depois de ser confrontado por Lucy, Kendrick volta a casa (tal como evidenciado no fim de For Sale?), consciente dos desafios que ultrapassou e, em Momma, percebe a importância das suas origens. Hood Politics segue-se e mantém-se a linha de raciocínio. O nosso herói volta a casa e, com a sabedoria que agora possui, critica a sua versão mais jovem, que era imprudente e desinformada. A música seguinte, How Much A Dollar Costs, é um exercício de escrita sublime com um dos maiores plot twists da história da música. A décima segunda faixa, Complexion (A Zulu Love), é um hino à igualdade e à beleza que cada um de nós possui, independentemente da cor da pele. Na sequência, e ainda sobre discriminação racial, temos The Blacker The Berry, a música mais impactante do projeto, na minha opinião, onde K-Dot, através de versos enunciados com imensa raiva, fala sobre proffiling racial e hipocrisia. Na reta final, You Ain't Gotta Lie serve como uma transição para um registo mais alegre e upbeat que culmina em i (sobre a qual entrarei em mais detalhe de seguida), que dá a vez ao título final, Mortal Man, onde Kendrick questiona se nós, os fãs, o iremos apoiar, mesmo quando ele estiver no fundo do poço.
i é provavelmente a minha música preferida de todos os tempos em si só. É aquela em que dou play quando me quero sentir bem, aquela que melhor me faz sentir comigo mesmo: é o meu hino. Com este álbum, e principalmente com este som, aprendi a amar-me. Em i, o nosso personagem reconhece que passou por muito, que foi tentado a muito, que esteve mal, mas que conseguiu dar a volta e encontrou amor próprio: encontrou o seu porto seguro em si mesmo. i é a antítese de u: se num momento estamos no nosso pior, há que acreditar que, eventualmente, iremos melhorar. Esta é a maior lição que retiro do álbum, daí ser tão importante na minha vida: sempre que me sinto mais pesado tenho algo onde me encostar e que me assegura que, apesar de tudo, EU AMO-ME.
Duarte Gomes
Departamento Cultural
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