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Foto do escritorDuarte Gomes

Torture Porn e Takashi Miike


O Halloween está aí à porta e, coincidência ou não, eu descobri um novo estilo de terror, o chamado “torture porn”. Melhor dizendo, “descobrir” talvez não seja o verbo mais adequado, visto que há já algum tempo que conheço e sigo algumas franquias deste género, nomeadamente Saw ou Hostel (provavelmente as mais sonantes); no entanto, durante estas últimas semanas tenho andado meio obcecado com as produções mais underground deste estilo, principalmente as nipónicas.


Neste breve exercício de escrita, proponho-me a tentar explicar o que se entende por torture porn, distinguindo este conceito do de splatter e gore, assim como a fazer uma pequena revisão histórica acerca da evolução deste modo de terror. Por fim, irei refletir sobre as criações de Takashi Miike, principalmente, a sua adaptação da obra de Ryu Murakami, Audition (Ôdishon).


Torture Porn? Splatter? Ou apenas Terror?


O termo torture porn foi cunhado pelo crítico David Edelstein, em 2006, num artigo sobre o filme Hostel, de Eli Roth. Apesar de, no seu todo, este guião ser muito mais do que cenas de tortura gratuita, foram estas as cenas que encheram as salas de cinema e tornaram o filme um clássico do terror.


Curiosamente, estas mesmas cenas tornaram-se o alvo primordial de inúmeras críticas, desde logo, as tecidas por Edelstein, que chega a questionar o porquê de assistir a este tipo de filmes e qual a necessidade de os mesmos existirem. Desde a conceção deste notável artigo, a expressão torture porn tem vindo a ser utilizada nos mais diversos contextos, sempre para se referir a filmes cujo principal objetivo é mostrar violência, geralmente na forma de tortura física.


Figura 1 - Takashi Miike no set de Hostel


Não obstante o termo só ter sido criado em 2006, não significa que não possa ser aplicado a outras obras que antecederam a sua criação. Na realidade, a única mudança que ocorreu nos anos 2000 foi a expansão deste género para Hollywood e, em consequência, para a superfície naquilo que é o icebergue do cinema, daí a maior atenção do público em geral para com este espaço cinematográfico. Antes de Saw (2004) e Hostel (2005) já havia Salò (1975) e I Spit on Your Grave (1978) (entre muitos outros, diga-se); apenas tinham uma designação diferente, sendo apelidados de splatters.


Então, qual a diferença entre um filme de torture porn e um filme splatter? Segundo alguns entendidos, a diferença não passa de um nome mais pomposo; todavia, outros são da opinião que torture porn designa aquelas películas que se focam principalmente na tortura e no desconforto e deixam a história para segundo plano – daí o rótulo pouco simpático.


No que a este tema diz respeito (e temendo estar a balizar a Arte), na minha experiência cinéfila, nunca associei torture porn a méritos romancistas ou artísticos, apenas àqueles filmes que usam tortura física e/ou sexual como um modo de causar desconforto, seja esta ação importante ou não para a construção de uma história maior. Isto distingue-se de um filme splatter porque nestes não é obrigatória a presença de tortura, apenas de conteúdo macabro (geralmente através do uso de sangue e vísceras). É a esta definição que referirei quando, daqui em diante, mencionar torture porn.


Evolução do Torture Porn ao longo dos anos


Tal como disse anteriormente, apesar do termo ter surgido em meados da década de 2000, bem antes disso já muitos desafiavam as convenções cinematográficas e aventuravam-se em estilos mais arrojados. Exemplo disso são as criações de Herschell Gordon Lewis, que já em 1963 dirigiu aquele que pode ser visto como o primeiro guião de torture porn, com a fita Blood Feast, que atualmente pode parecer um pouco obsoleta, principalmente num género em que os efeitos visuais são muito importantes, mas que, para a época, pode dizer-se que foi algo revolucionária.


No entanto, foi apenas nas décadas seguintes que este estilo de terror começou a ganhar tração, com o lançamento de filmes como Salò – 120 Days of Sodom (1975) e Cannibal Holocaust (1980). Nestes clássicos existe um objetivo intrínseco de tecer um comentário social (o primeiro critica a sociedade fascista italiana e o segundo, a sociedade ocidental, comparando-a com uma tribo canibal), introduzindo cenas chocantes e difíceis de assistir (daquelas que nos fazem ponderar se os realizadores não deveriam ser presos) e suscitando uma divisão da crítica. Além disso, também me parece interessante o facto de nenhuma destas produções ser propriamente aterrorizante, focando o seu “terror” mais no desconforto do que no medo (aqui o medo será limitado àquele provocado pela sociedade alvo das críticas).


Figura 2 - Posters originais de "Salò" e "Cannibal Holocaust"


Continuando na linha temporal e entrando num novo milénio, é por esta altura que nasce o “verdadeiro” torture porn ou, pelo menos, aquele que originou a expressão. Sagas como Saw e Hostel estão na base deste nascimento, mas outras obras cinematográficas, como Wolf Creek (2005), The Human Centipede (2009) e Srpski film (2010), também ajudaram na evolução deste género.


Falando sucintamente de correntes, importa mostrar que grande parte dos filmes mais conceituados deste estilo de terror (e alguns dos mais controversos e chocantes) não são fruto das ideias de Hollywood. Uma das correntes mais importantes é a francesa, que esteve na base de clássicos como À L’intérieur (2007), Martyrs (2008) e Les 7 jours du talion (2010). Contudo, na minha opinião, não há quem faça torture porn como os japoneses.


Torture Porn, Takashi Miike e Audition


Como em muitas áreas, também na escrita e realização de filmes grotescos e difíceis de digerir os Japoneses são bem melhores do que os ocidentais – e, se querem sentir desconforto, não há como falhar se escolherem um filme de terror nipónico. A verdade é que, desde cedo, esta corrente de torture porn se mostrou como uma forte candidata a líder naquilo que é a construção de cenas difíceis de assistir. Longas-metragens como Shogun’s Sadism (1976), Tetsuo The Iron Man (1989), Naked Blood (1996), Muzan-E (1999) e a série de filmes Guinea Pig (1985-1989) são apenas alguns dos muitos exemplos de como os orientais são exímios na arte do gore e do desconforto.


Todavia, falar nesta corrente de cinema sem mencionar a mente que é Takashi Miike seria blasfémia. O escritor e realizador é um dos mais celebrados do mundo do terror e, na minha visão algo limitada, o melhor deste estilo de cinema. No seu vasto catálogo, contém mais do que alguns clássicos, nomeadamente Ichi da Killer (Koroshiya Ichi) (2001), Bijitâ Q (2001) e Gozu (2003); no entanto, é em Audition (Ôdishon) (1999) que Miike mostra todo o seu poderio como realizador.


Esta obra, uma adaptação do livro de Ryu Murakami de mesmo nome, é um encontro entre o romance e o terror, uma oposição entre cenas lindas e cenas tenebrosamente sombrias. Em Audition, seguimos um viúvo, Shigeharu Aoyama (Ryo Ishibashi), que, na sequência da sugestão do filho, tenta voltar a encontrar o amor, sendo que, para isso, organiza, com a ajuda do amigo produtor de cinema, Yoshikawa, uma audição para um “papel”, o de sua mulher. Durante as entrevistas, Aoyama fica encantado com uma jovem mulher, Asami Yamazaki (Eihi Shiina), e mais tarde convida-a para sair. Nestes encontros, assistimos à evolução da relação entre os dois personagens principais, como num típico romance; no entanto, isso não perdura, com as questões sobre quem será realmente Asami a gradualmente invadirem a mente de Aoyama.


Neste que é considerado por muitos o seu Magnum Opus, Miike conta uma história que nunca nos deixa sossegados, sempre com medo do que poderá trazer a próxima cena. A tensão que subjaz a todo o enredo e o contraste entre imagens inocentes e horripilantes contribui para uma atmosfera deprimente e uma experiência que ficará certamente marcada em quem tiver a coragem de assistir a esta obra-prima do torture porn.


Figura 3 - As duas versões de Asami (Eihi Shiina)


Duarte Gomes

Departamento Cultural

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