Traição à alma do jogo
- Gabriela Baltazar
- 1 de out.
- 2 min de leitura
Há quem insista que o desporto é ainda paixão, união, emoção. A verdade é que há muito o deixou de ser. O desporto, atualmente, é um negócio milionário cuja alma ficou pelo caminho. Essa essência está a ser vendida ao melhor patrocinador e servida em formato de espetáculo televisivo somente a quem pode pagar.
Os atletas, que antes representavam clubes e cidades, são, agora, marcas globais, cuidadosamente geridas por equipas de marketing que decidem o que dizer numa entrevista, quantos segundos devem sorrir para a câmara, que causas devem apoiar. O que dizem e como se movem fora de campo vale tanto (ou mais) do que aquilo que fazem dentro dele. As “quatro linhas” são cada vez mais uma montra e cada vez menos um palco de caráter efetivamente desportivo.
E nós, os adeptos? Somos tratados como clientes: quem não pode pagar fica de fora. Bilhetes a preços absurdos, estádios remodelados para experiências “VIP”, pacotes televisivos que cobram um preço para cada competição. Isto vai acontecendo enquanto se empurra o adepto comum para o sofá de casa.
Onde está o fair play, a emoção crua? Talvez tenha ficado no passado. No presente, somos adeptos calados: nos estádios já não se pode cantar, levar bandeiras e tambores. Já não podemos contestar sem que isso seja visto como um comentário ofensivo. E até mesmo a tecnologia… o “VAR”, aquele que prometia justiça, apenas trouxe mais discussão e burocracia. Não se admira a beleza de um golo ou de uma jogada coletiva. Em vez disso, analisa-se e discute-se a decisão do árbitro de anular um golo, marcar um penálti ou expulsar um jogador.
O desporto nasceu nas ruas, nos recreios da escola. Era algo simples, puro. No passado, uns chinelos e uma bola eram suficientes para guiar sonhos. Hoje, o caminho para os grandes palcos está bloqueado por contratos milionários, empresários gananciosos. Hoje, para muitas pessoas, o acesso a treinos ou competições é considerado um luxo.
Quiçá a hipocrisia esteja em nós. Somos nós que continuamos a permitir isto. Temos noção que o desporto está a perder a sua autenticidade, mas continuamos a encher estádios e pavilhões, a pagar mensalidades de canais premium, a vestir camisolas a preços exorbitantes. É, no fundo, uma bipolaridade silenciosa.
O desporto não está a perder a alma - está a vendê-la. O que sobra de genuíno encontra-se longe das câmaras. Talvez num pavilhão vazio onde meia dúzia de adeptos grita como se fosse final olímpica; num campo de terra batida onde crianças correm descalças atrás de uma bola… aí sim, a alma ainda respira. O que nos restará não será desporto. Será apenas um produto. Bonito, milionário… mas vazio por dentro.
Gabriela Baltazar
Departamento Desporto
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