Iniciar um ciclo pode ser complicado. Existe um medo constante de falhar, de não corresponder às expectativas. A pressão é, portanto, inevitável, especialmente quando assumimos a responsabilidade de inovar.
A criação de um Departamento focado no mundo desportivo é uma decisão que, embora corajosa e acertada, chega com algum atraso. Isto não invalida, quiçá intensifica, a responsabilidade de traçar um rumo para este novo navio.
Neste sentido, dou por mim a questionar de que modo devo dar início a este capítulo - não apenas da história do Tribuna, mas também da minha (ainda curta) experiência como redator e, agora, coordenador. Após alguma ponderação, a resposta a este dilema surgiu de forma intuitiva, principalmente quando percebi que precisava de provar a mim próprio que sou capaz de abraçar este desafio e a razão pela qual o estava a fazer: porque sou um apaixonado pelo desporto! Assim sendo, penso que não há melhor maneira de iniciar este ciclo do que fazer uma homenagem ao tema que aqui nos reúne.
“O desporto tem o poder de mudar o Mundo” – esta icónica frase de Nelson Mandela é habitualmente usada para referenciar o poder inspirador da prática desportiva, num sentido quer de cultivador de esperança, quer de unificador de povos. De facto, apesar do tom algo sensacionalista, este sentimento de que o desporto pode ajudar na optimização da sociedade é por mim partilhado, embora tenha plena noção de que, na realidade em que vivemos, poderá até ser mais fácil ver o desporto como fraturante do que como harmonizador (mas isso é um assunto para nos debruçarmos noutra altura).
Mais do que refinadora da sociedade, a prática desportiva é, acima de tudo, essencial ao crescimento pessoal. Por um lado, fomenta a saúde e bem-estar individual e coletivo, no sentido em que combate o sedentarismo e promove a saúde mental e o equilíbrio emocional. Por outro lado, contribui para o desenvolvimento de competências e habilidades como responsabilidade, humildade, respeito, disciplina, gestão de conflitos e, caso aplicável, liderança e trabalho em equipa. Ajuda, também, a moldar o carácter, a lidar com os insucessos, afasta-nos de comportamentos de risco, torna-nos mais resilientes e ensina-nos que os erros fazem parte do caminho e que, com esforço e trabalho, é possível alcançar os nossos objetivos.
Pronto, agora que já tiveram tempo de recuperar do enjoo causado por tanta adulação, vamos manter-nos firmes nesta maratona de elogios ao desporto (desculpem lá, eu sei que sou incansável), agora não como atividade física, mas sim como arte: aquele fator que o torna um espetáculo e a razão pela qual este é passível de ser assistido. Obviamente que não será a única razão, até porque uma grande parte da cultura desportiva baseia-se na competição e é esta que, de alguma maneira, traz uma boa parte dos espectadores. Porém, talvez ingenuamente, argumento que, não tivesse o desporto um toque artístico, não seria tão mainstream, não abriria jornais, não atrairia milhões de visualizações e, certamente, não teria o seu espaço dedicado dentro do Jornal Tribuna.
Apenas uma nota antes de continuar: esta ideia de que o interesse pelo desporto está relacionado com o seu nível artístico não significa que exista uma relação linear entre ambos: o mais provável é esta relação ser mediada por outras variáveis, nomeadamente cultura, imprevisibilidade e acessibilidade (quer na prática, quer na assistência). Apenas deste modo se pode conceber o facto dos 20 programas mais vistos em canal aberto no ano de 2023 serem jogos de futebol. Ainda assim, acredito que exista uma certa correlação entre as duas variáveis, o que explica o facto de uma semifinal entre Jannik Sinner e Carlos Alcaraz ter mais audiência do que uma final entre dois tenistas fora do top 50 do ranking.
Na teoria, um embate entre os atletas supramencionados seria o duelo mais aguardado, acima de tudo porque seria aquele que produziria mais momentos mágicos, o que teria um maior índice de genialidade ou, por outras palavras, o mais artístico. Mas, então, em que medida podem um encontro de ténis, uma corrida de ciclismo ou um combate de judo ser considerados arte? Naturalmente que nem todos os encontros, corridas ou combates são arte, no entanto, é possível que sejam ou, no mínimo, é possível que criem momentos artísticos. É isto que alguns filósofos têm defendido, particularmente Ruth L. Shaw, S. K. Wertz e Dimitri Platchias.
O desporto e a arte convergem em diversos pontos, nomeadamente na estética, criatividade e expressão emocional. Esteticamente, Platchias (2010) alega que, tal como na arte dita tradicional, também no desporto existe uma busca pela perfeição, pelo estilo e pela exímia execução técnica, a qual os atletas alcançam (ou tentam alcançar) através do treino. Deste modo, existirá um aperfeiçoar dos movimentos e da fluidez com que estes são executados, o que, especialmente em algumas modalidades como a ginástica ou os desportos acrobáticos, leva a uma prática graciosa e virtuosa, a qual, na sua subjetividade estética, pode ser considerada arte. Este é um outro ponto importante: assim como nas obras de arte, o que uma pessoa acha belo e admirável varia de espectador para espectador. Em relação à dimensão da criatividade, o autor refere que, à semelhança dos artistas que buscam inovar e explorar novos caminhos, também os atletas são obrigados a utilizar a sua imaginação para enfrentar desafios e adaptar-se a situações dinâmicas. Esta expressão criativa manifesta a singularidade e a originalidade dos desportistas; assim, do mesmo modo que um escultor inventa novas técnicas, também um jogador de andebol inventa um novo remate ou um novo drible.
Por fim, na dimensão da expressão, segundo Platchias (2010), os atletas, na sua individualidade, exprimem emoções através dos seus movimentos, o que se compara com performances no teatro ou dança, onde os intérpretes utilizam o seu corpo para comunicar sentimentos. Além disso, também o desporto desperta no espectador sentimentos, desde a esperança e serenidade, à raiva e descontentamento. Por conseguinte, os fãs de desporto vibram e sentem-no, assim como o público em geral admira um filme do Tarantino, e isto é, indubitavelmente, uma forma de apreciação estética.
Consequentemente e em jeito de conclusão, fica a ideia de que o desporto, quando visto numa aceção além da competição, pode ser interpretado como um modo de arte dinâmico, rico e multifacetado, que, através de movimentos cuidadosamente aperfeiçoados que trespassam a individualidade dos artistas, transmitem sentimentos e narrativas para um público que, a meu ver, deve cada vez mais focar-se nestes aspetos e deixar para trás os clubismos e mesquinhices.
O meu conselho final é que, considerem ou não o desporto uma forma de arte, o aproveitem, que sejam felizes a ver os vossos jogadores preferidos a criarem momentos, que dêem valor quando tal acontece; que não deixem a pequenez da cultura desportiva influenciar-vos e que, quando a oportunidade surgir, contemplem ao vivo os vossos artistas prediletos e libertem as vossas emoções numa merecida catarse emocional, daquelas que poucas coisas podem proporcionar assim como o desporto o faz.
Duarte Gomes
Departamento Desporto
Referências Bibliográficas:
Platchias, D. (2003). Sport Is Art. European Journal of Sport Science, 3(4), 1–18. https://doi.org/10.1080/17461390300073403
Wertz, S. K. (1979). Are sports art forms?. Journal of Aesthetic Education, 13(1), 107-109. https://doi.org/10.2307/3332093
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