top of page

Um retrato da solidão na terceira idade

  • Foto do escritor: Mariana Polido
    Mariana Polido
  • 7 de mar. de 2024
  • 3 min de leitura

“A máquina de fazer espanhóis”, de Valter Hugo Mãe


Um dia olharemos ao espelho e constataremos que estamos irremediavelmente velhos. O sobrolho descaído, as rugas vincadas pela idade. O reflexo não vislumbrará mais aquilo que fomos, as memórias desvanecidas, muitas vezes por demência, não nos permitirão lembrar, sequer, aquilo que somos. 


Esta realidade é distante, para muitos de nós, mas inevitável; afinal, a velhice espreita à porta de todos aqueles que, felizes, poderão gritar vitória pelas linhas do tempo estampadas num rosto cheio de história. “A máquina de fazer espanhóis”, de Valter Hugo Mãe, faz um retrato da vida dos velhos, sem eufemismos. Explora a solidão associada à terceira idade, o sentimento de perda, o amor e o valor da amizade. É a partir das lentes do Sr. Silva, avassalado pela perda da “sua Laura”, que encaramos de frente esta realidade, quando este deixa para trás a vida que conhecia para embarcar na nova aventura que o chama - o lar da “Feliz idade”. 


É com pouco entusiasmo que o nosso protagonista encara a sua estadia naquela que será a sua última casa, sentindo-se mais um depósito, esquecido pelos familiares, entre as quatro paredes de uma estrutura residencial à qual não pode chamar de casa. O receio da morte, dos quartos da ala esquerda com vista para o cemitério, paira sobre a mente dos utentes. É neste cenário, contudo, que o Sr. Silva, na sua solidão, descobre o valor da amizade, como é bom ter alguém com quem partilhar o peso da sua realidade.


“precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia, este resto de vida, américo, que eu julguei já ser um excesso, uma aberração, deu-me estes amigos, e eu que nunca percebi a amizade, nunca esperei nada da solidariedade (...)”


O medo de acordar com menos um amigo torna-se constante. Desacreditado em metafísicas, o nosso protagonista já só espera uma coisa, a morte.


Esta personagem dá voz a um coletivo, a uma realidade presente na maioria dos lares do nosso país, cujo modelo permanece intocável desde 1982. Os lares em Portugal não prestam cuidados individualizados, ao que surge associada uma perda de identidade de cada utente. Pouco importa se, antes de institucionalizado, o utente tomava banho (preferencialmente, à tarde), se ele não tem fome a uma dada altura, se tem ou não disposição para ir à enfermaria. A liberdade individual perde-se, na medida em que cada um é inserido na mesma calendarização rotineira, feita, de um modo geral, sem atender às necessidades e vontades específicas individuais. 


Quando entro num lar de idosos, onde durante tantos anos a minha avó deu de si, àquela casa, aqueles velhos, vejo que nada mudou e apercebo-me do quão bem este livro retrata a realidade atual. A dona Rosa (nome fictício) passa os dias numa cadeira de rodas, no salão comum, absorta de toda a realidade à sua volta e recordando o que a memória lhe permite. Incapaz de se deslocar livremente, vive a cruz dos seus dias aguardando o momento em que a levam para as refeições. – É agora que me levam? É agora? Já só espera uma coisa, que a morte lhe dê o tão ansiado conforto. – Tudo termina. Acaba-se a gente. Pior do que morrer de facto é ir-se morrendo em vida aos bocadinhos. 


Apesar de tudo, acredito que há espaço para a felicidade quando o lar faz o seu trabalho e a família cumpre o seu papel. Um abraço amigo, de uma funcionária atenciosa, não terá o mesmo gosto do abraço do filho ausente. Um lar nunca será casa para os idosos, nunca serão estes velhos de mais para o colo. A presença mais regular da família poderia suprir o sentimento de abandono. Muitos partem sem uma única visita. 


Olho para os velhos que são e lembro os que ainda estão por ser.  Aquele que é o último estágio da vida, a antecâmara da morte, a despedida final deveria trazer o conforto de dias mais felizes. 


Mariana Polido

Departamento Cultural

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo

Comments


© 2024

Jornal Tribuna

bottom of page