Lisboa, 30 de dezembro de 2022. A conversa flui: o curso de Direito, as dúvidas, o lugar de estacionamento (ou a falta dele), o álbum, a música e o chocolate quente.
“… achas que posso gravar?”
Quem é a Mimi Froes…
Como foi a tua infância? Já havia música na tua vida?
Esta é a primeira entrevista em que eu vou negar tudo o que disse até hoje: costumava dizer que na minha vida a música surgiu porque eu queria chamar a atenção, era efetivamente uma criança que precisava de muita atenção, e achava que a música tinha começado por aí— mas houve uma vez que os meus pais ouviram uma entrevista minha em que eu contava isto e disseram “Tu tens noção que isto não é verdade? Mimi, cantas desde miúda, tens essa necessidade desde muito pequenina”. Então fui procurar, e de facto há vídeos meus muito pequenina a cantar, com muita vontade de aprender danças, adorava teatro... Eu lembro-me inclusive de, quando tinha 8 anos, os meus pais me oferecerem um daqueles gravadores de cassetes com microfone (cor-de-rosa)... e eu falava, falava, falava e cantava. E depois claro, o cantar vem alinhar-se com o facto de eu cantar bem— digo isto porque a única coisa de que eu nunca vou ter mérito é o talento com que nasci. E então em miúda começou um bocadinho por aí, comecei a ter aulas de guitarra por volta do 3° ou 4º ano na Nossa Senhora do Cabo e não me identifiquei porque era música clássica. Hoje gosto, aprecio, oiço música clássica mas na altura custava, estava habituada a ouvir a rádio e os hits e daí para a música clássica vai uma grande distância. Se tu em criança não fores alimentada a ouvir Beethoven, Chopin, Schönberg, só mais tarde consegues procurar esse gosto por ti próprio. Dizes a uma criança habituada a ouvir Bruno Mars que é assim que vais aprender música e ela fica a olhar para ti de cabeça de lado do género "estás tontinho"... E então não adorei. Até porque eu tinha ido com o objetivo de aprender guitarra para acompanhar quando cantava e, sobretudo no início, isso é muito difícil. Então desisti, não estava para aí virada, e só voltei a estudar música aos doze, quando fui para uma professora de voz que eu não sei como os meus pais encontraram. E isso foi a grande virtude dos meus pais, eu não tinha artistas na família ou conhecidos, portanto também não havia ninguém a quem os meus pais pudessem perguntar "Olha a minha filha quer ser cantora, o que é que eu lhe faço?". Então os meus pais fizeram esse percurso comigo, descobriram comigo. E, assim, eu cheguei à Professora Guida de Palma- que foi a primeira pessoa que me impulsionou a ler música (uma coisa que eu achava um bocado seca, que não gostava de fazer mas que encontrei a razão de ser mais velha). Aqueles dez minutos de leitura fizeram toda a diferença. A professora tinha um estúdio e eu gravava algumas músicas, toda contente, como o "Eu Sei" da Sara Tavares. Estive com a Professora Guida até aos quinze ou dezasseis, ainda apanhou o meu tempo no fator X.
Como foi o Fator X?
Hmm... teve tanto de bom como de mau. Tive de crescer muito rápido porque entrei num mundo em que se está completamente exposto a críticas e em que não se está a trabalhar com uma equipa feita para nós. Não importa muito se gostas daquilo ou se tem muito a ver contigo— é um programa de televisão com algum conteúdo musical e não um programa de música como às vezes, falsamente, dizemos. O Fator X foi o que me fez afastar da música e eu só voltei quando o João Só me disse "Mimi, o que tu experienciaste não foi o mundo da música, foi o mundo da televisão." E o mundo da música também é puxado, atenção, mas de formas muito diferentes. Está muita gente do lado de lá do ecrã, em momento nenhum da tua vida, nem na festa de Natal da escola, estás sujeito a tantos olhares. O programa teve aspetos muito maus nesse sentido, era uma pressão gigante, mas também teve aspetos muito bons: deu-me uma pica, um “drive” e capacidade de lidar com a frustração, com ouvir um “não” e aprender a bater o pé quando é preciso. Depois de finalmente conseguir dar a volta por cima, o Fator X trouxe-me muita coisa boa. É importante salientar que estes programas também têm alguns aspetos muito bons, permitem pisar pela primeira vez um grande palco, trabalhar com grandes produções e, claro, têm grande visibilidade.
Sobre os anos em Direito …
[ A Mimi estudou Direito durante dois anos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, depois optou por estudar Jazz e Música Moderna na Universidade Lusíada ]
Porquê Direito?
Foi uma história engraçada. Eu estava no 9º ano e fui fazer testes psicotécnicos… o resultado foi de 99% Direito. O problema dos testes psicotécnicos é que, em alguns aspetos, estavam um bocadinho desatualizados. Eu tive aulas de guitarra clássica em miúda, como já disse, e não me identificava. Por isso, quando fazia os testes, que se calhar até tinham algumas opções relacionadas com música— por exemplo “dirigir uma orquestra” — nunca eram opções que me chamassem muito, se calhar havia ali outras que eu gostava mais. Assim, os testes deram aquele resultado e eu fui para a área de Humanidades no secundário, e depois fui para Direito. Acho que se calhar outro fator foi o de não haver verdadeiramente uma área de “Artes” no secundário, mas sim de “Artes plásticas”… o desenho ou a geometria descritiva interessavam-me muito pouco. Um dos calcanhares de Aquiles de Lisboa era o facto de haver tão pouca oferta de cursos profissionais na área das artes performativas e da música. Sei que, na altura, no norte já havia a JOBRA que é espetacular e era uma pena não haver nada assim em Lisboa. O conservatório abriu há relativamente pouco tempo um curso profissional de jazz, o que é ótimo! Falta mais oferta e diversidade estilística! Foi mais ou menos assim que vim parar ao curso de Direito do qual, de facto, gostei!
Sobre desistir do curso (coragem!): o que precisaste para tomar essa decisão? O que dirias aos (muitos) estudantes contrariados de Direito que se estão neste momento a debater com questões semelhantes às tuas de há uns anos?
Como estava a dizer, eu gostei do curso porque sempre fui muito curiosa e sempre gostei de aprender. Por isso gostei da parte teórica do curso e saí-me muito bem. Eu lia os livros, fixava o que lia (tenho uma boa memória) e tinha boas notas. Acho que gostava daquelas matérias por terem muito de história, filosofia e português, de que gosto muito. Aliás, acho que se não tivesse ido para Direito e tivesse escolhido História ou Literatura também teria gostado muitíssimo e acho que se calhar até teria feito até ao fim. A “questão” com Direito começou quando, no fim do primeiro semestre, me inscrevi em três melhorias e na primeira fui tão mal tratada que decidi não ir a mais nenhuma. E nunca mais voltei a ir. Isto não é uma resposta de alguém que goste verdadeiramente do que está a fazer e, agora que olho para trás, vejo isso muito claramente. Outro fator foi o facto de não haver nenhuma área do Direito que eu me imaginasse a exercer, os meus amigos até podiam estar indecisos mas era porque gostavam de Penal, gostavam de Administrativo, gostavam de Obrigações… e eu não. O máximo que eu aceitava vir a fazer (e mesmo isso…) era ser juíza num tribunal de família, mas nem sei como ia conseguir dormir à noite.
Como eu era boa no curso, acabava sempre as cadeiras em dezembro, sem ter de ir a exames - o que me dava quase um mês e meio de férias. Nessas férias eu dedicava-me à música, trabalhava no que verdadeiramente gostava. No segundo ano da licenciatura estava inscrita numa escola de música— estudava quatro horas por dia para o curso e mais duas ou três de música. Continuei a ter bons resultados, mas foi muito cansativo e cheguei ao fim do segundo ano exausta. Aí os meus pais, que sempre me apoiaram imenso, sugeriram que eu parasse um ano e investisse na música, um bocadinho para tentar perceber se seria então aquele o caminho. Foi durante esse ano que tive aulas com a Luísa Sobral. Depois desse ano comecei o curso na Lusíada em Jazz e Música Moderna.
Acho que o que o digo aos estudantes que possam estar com dúvidas é que ponham em cima da mesa todas as possibilidades de trabalho na área que vos interessa: no meu caso isso ajudou imenso. Quando equacionei o que me parecia ser a “pior hipótese” dentro da área da música, que eventualmente seria dar aulas no primeiro ciclo a crianças que não querem aprender música, e percebi que ainda assim seria mais feliz do que na advocacia por exemplo, tornou-se mais fácil tomar esta decisão. Até porque eu percebi que seria feliz a dar aulas de música, seria feliz a fazer arranjos, seria feliz como back vocalist se ser cantautora não funcionasse. Perceber isto para mim fez toda a diferença, muito porque eu não tinha nenhum músico na família, ninguém que eu visse de perto a fazer da música a sua vida e por esse motivo parecia-me algo muito distante e se calhar impossível.
A partir do momento em que percebi que dentro da música tinha muitas opções, a escolha tornou-se mais leve, quase intuitiva.
O que levaste do curso, se levaste alguma coisa?
Levei algum domínio da palavra, cultura geral, um pensamento muito mais racional e muito lógico, e a retórica. Hoje safo-me muito bem em entrevistas exatamente porque o curso de Direito me deu essa estaleca.
Sobre a música…
Quando compões, como é o teu processo criativo? Qual é o papel da tua banda? E da tua formação em jazz?
Para compor costumam ser sempre processos diferentes, gosto de me desafiar e ajuda-me a desbloquear. Já comecei pela letra, já comecei pela harmonia, já comecei pela melodia, já comecei pelo ritmo, já comecei pela produção... Na generalidade das situações, saem-me muitas músicas no banho (nunca vou perceber porquê) e são sempre as que mais gosto. Isto porque, quando estás a fazer música a capella, só tens o silêncio e a tua voz, a tua música tem que ser interessante para preencher o silêncio, portanto, de certa maneira, saem melodias mais fortes assim. Por outro lado, gosto muito de escrever com a guitarra, muitas vezes leva-me para outro lado para o qual o meu instinto não iria. E aqui entra a formação em Jazz: eu sei que, para determinados acordes, há outros que, mesmo que inesperados, soam bem, fazem sentido- é muitas vezes um caminho teórico. Outras vezes, “metes o truque” e afinal a música não te está a pedir aquela complexidade. Temos de ter algum distanciamento das nossas próprias músicas para conseguirmos perceber quando é complexidade a mais, quando a letra não está boa o suficiente, quando um acorde não serve uma canção, etc. É muito importante desassociarmos o ego e o orgulho que muitas vezes surge com as obras que criamos, porque no final da história a obra não vai ser só nossa. O mote tem de ser sempre servir as canções. Não sai tudo “naturalmente” como às vezes se julga, quem é músico tem de ouvir muita música, tem de ler muito, tem de ver muito— a criatividade é um músculo que se treina constantemente! Dizia a Carolina Deslandes “Nunca vi ninguém correr a maratona sem correr um bocadinho todos os dias”, e é verdade. Não é um processo fácil, as melodias não caem do nada, às vezes obrigo-me a escrever. Aliás, custou-me fechar este último disco, confesso. Lembro-me que foi um processo ardiloso, foi a primeira vez que tive de apresentar dez músicas.
Que música ouves que te inspira? Quais são algumas influências que identificas na tua música?
Por acaso, uma coisa muito engraçada que me aconteceu neste disco foi, num dia em que estava “bloqueada”, recorri à música que ouvia nos dias em que gostava muito da música que escrevia: Lizzie McAlpine. Fui ouvir duas ou três músicas dela e saiu-me logo a seguir uma música a partir de um acorde de uma música (não lançada) que está no Instagram dela. O Carlos Tê, com quem fiz um workshop de escrita de canções, dizia “Começamos por imitar os outros e é ao tentarmos replicar e errarmos que nos descobrimos a nós mesmos”. Acho que ao longo de toda a minha vida sem dúvida o Stevie Wonder, uma das minhas maiores influências, o que acho que se percebe bem na minha música- pop com uns acordes “mais fora”. O Stevie Wonder é um dos reis do pop mas com “acordes de jazz” e cadências e melodias estranhas. Adoro Bruno Mars, se calhar influencia-me nalgumas [das] minhas músicas com mais groove, mas, no geral, não é uma grande influência. A nível de música portuguesa, sobre letristas e compositores, sem dúvida a Luísa Sobral: para mim não há ninguém que chegue aos calcanhares da Luísa; podemos falar em Rui Veloso e Carlos Tê juntos, mas a Luísa é uma pessoa sozinha. Também gosto muito do Miguel Araújo e do Samuel Úria, a música deles influencia-me muito. Gosto da forma como o Miguel Araújo fala do quotidiano e da forma como o Samuel Úria critica a sociedade apontando-se a ele mesmo primeiro. Quanto a intérpretes, o melhor, de longe, que já ouvi é o Salvador Sobral, é espetacular. Mesmo incluindo artistas estrangeiros, o Salvador está noutro patamar e acho que às vezes Portugal nem se apercebe que o tem. Até o Caetano Veloso chegou a dizer: “Portugal, não se esqueçam que têm dois irmãos Sobral”. Também gosto muito da Carminho, uma grande intérprete. Outra coisa muito impactante na minha música e na minha carreira, no geral, foi o facto de, entre os 15 e os 20, ter vivido uma era de covers: cantava muito Beatles, Fleetwood Mac... fazia hotéis, fazia bares, semanalmente. Isso caleja muito e obrigou-me a estar sempre em cima do repertório que havia- músicas antigas mas também tudo o que estava a sair naquele momento. Posso dizer que esse é o maior conselho que posso dar a alguém, com catorze ou quinze anos, que se queira dedicar à música: comecem por fazer bares, hotéis, casamentos... tudo. Dá uma noção de público e de palco muito grande, faz conhecer repertório. Dá uma estaleca incrível.
As tuas letras têm um caráter muito intimista, poético muitas vezes. Numa entrevista comparas a tua música a um diário gráfico, como é para ti escrever letras? O que te inspira?
No início deste meu caminho, e estou no início ainda, tinha uma maior facilidade em contar uma história do que em falar sobre mim, portanto, de certa maneira, era-me mais fácil ouvir a história do Rui Pedro, por exemplo, e replicá-la numa canção (Mão Agreste). Isto por acaso surgiu depois de num jantar em casa de um amigo meu, a namorada dele, prima do Rui Pedro, ter contado a história do ponto de vista de quem a viveu de dentro, não só nos media. No dia a seguir escrevi a Mão Agreste, toda num dia, a pensar como será que o Rui Pedro vivia, como é que ele se sentiu, etc. Esta canção saiu-me das entranhas mesmo. Não acho que depois tenha sido a mais bem conseguida em disco, tenho pena, gosto mais dela à guitarra ou ao piano. No primeiro disco, as únicas canções que tenho em que falo sobre mim são a “Multidão, sobre a minha existência no mundo da música mas está escrita de uma forma tão metafórica que passa um bocadinho ao lado, e a “Entre Namorados”. De certa forma a “Vou” também é sobre mim mas é música mais fácil, estou bem, sou feliz. No geral, era-me muito mais difícil escrever sobre mim— e este é um atrevimento que vou levar para o meu próximo disco, que é inteiramente sobre mim.
Qual foi o papel da Luísa Sobral neste teu percurso e na forma como compões e escreves?
Na forma como componho e escrevo a procura da excelência, sempre. A Luísa não se satisfaz, acaba uma música e procura sempre a aprimoração daquilo que fez, isso é fundamental e ensinou-me muita coisa. A Luísa é uma mentora, uma mão que me leva e me ajuda. Quando mudei de agência deu-me muito a mão. Para mim, a Luísa é a pessoa mais generosa que existe no meio musical, açambarca a existência do outro e ajuda em tudo o que pode. Na altura, a Luísa produziu duas canções do meu primeiro disco- a “Multidão” e a “Não faz mal não estar bem” e depois foi acompanhando. Ainda hoje falamos, ainda hoje nos damos. Eu admiro-a muito, somos amigas, mas eu tenho sobretudo respeito. É a minha mentora, eu olho para a Luísa, e para o Salvador também, e sei que estou muito próxima do expoente máximo da música em Portugal.
No teu novo álbum vais ter uma canção escrita pela Luísa. Como foi esse processo?
Este pedido para a Luísa me escrever uma música teve duas vertentes: em primeiro lugar agradecer todo este caminho que fizemos até agora, e acho que não havia melhor agradecimento para dar do que cantar uma canção dela e tentar embelezá-la ao máximo e, em segundo lugar, para mim, isto era a oportunidade perfeita para todos os concertos que tiver poder dizer “isto é uma canção escrita, para mim, por uma das melhores compositoras em Portugal”, eu precisava, para mim, como agradecimento, de ter uma forma de constantemente relembrar as pessoas que me ouvem de que há aqui em Portugal um ser muito especial chamado Luísa Sobral. Portanto, mais do que poder cantar uma canção da Luísa é poder servir como fonte ou meio de transmissão do talento incrível dela e por isso queria muito.
O teu concerto no M.Ou.Co, no início de dezembro, abria com a “E a cantar” e foi, ao longo de todo o concerto, um ponto de ligação. Como foi pensar “um” concerto?
O Manel Oliveira, o meu pianista , disse-me assim: “Era engraçado que o teu disco começasse com a “E a cantar”, com o contrabaixo, depois a meio fosse outra coisa com mais gente” mas já estava o disco todo gravado e eu não ia fazer isso. Fiquei com muita pena mas depois quando comecei a preparar o concerto foi exatamente isso que me deu luz na cabeça— e aí pensei, vou fazer o “E a cantar” como o ponto de ligação que é entre os dois discos. Isto porque eu tinha dois discos num só concerto e muito diferentes entre si, o segundo tem alguns elementos mais na onda do Jazz enquanto que o primeiro é pop— o que os une é o facto de eu os cantar. Então, nesse sentido, a “E a cantar” para mim era importante; comecei por tentar a capella, pensei como ia fazer para juntar os dois discos de alguma forma, pensar como ia apresentar e depois queria que houvesse um momento de solo para cada um dos meus músicos em que lhes pedi que ligassem as canções e ligassem à “E a cantar”, portanto acabava uma canção, eles tocavam na sua forma improvisada a “E a cantar” para chegar à próxima canção. E era esse o objetivo, estar constantemente a voltar à “E a cantar”.
Ainda sobre concertos, podes-nos falar um bocadinho da experiência no EDP Cool Jazz? Como surgiu a oportunidade, expectativas, medos, como correu?
Por acaso a Música no Parque acabou por ser maior, veio mais gente ver. No Cool Jazz, como eu sou muito diferente do Paul Anka, a maioria do público não pensou em ir à abertura. Como eu não sou tão diferente assim dos Quatro e Meia as pessoas vieram à abertura. Por outro lado, também teve a ver com a altura do ano, a altura do Música no Parque já foi mais no “pós-covid” do que o EDP Cool Jazz, as pessoas já iam mais a concertos. A experiência em si foi boa, assustam-me um bocadinho os grandes palcos, sou mais dada a palcos pequenos. Por exemplo, adorei o Capitólio mas gostei mais da intimidade no MouCo, são mais interessantes para mim— consigo dedicar-me mais ao público à minha frente. Se calhar, quando for o meu palco grande (o maior que tive até agora, meu, foi o Tivoli) vai ser diferente, ainda só fiz aberturas e lá o meu trabalho é só provar ao público que valeu a pena terem vindo mais cedo para me ouvir. Nesse sentido era muito desafiante, muito bom, mas desafiante.
Sobre o álbum que aí vem…
O que podes revelar? Algum preferido?
Posso dizer que o álbum, pela primeira vez, é inteiramente sobre mim e que, ainda não podendo dizer o nome do disco, o nome surgiu antes deste estar fechado. Eu sabia qual era o nome que queria e achava que o queria por simbolizar o início de uma carreira. Quando de repente, quando escrevi a música que dá nome ao disco (obriguei-me a escrever uma música com aquele nome) me apercebi que não tinha tanto a ver com isso mas sim com a perda de controlo. Eu sou uma pessoa que precisa de ter tudo sob controlo, tenho a necessidade de tentar entender tudo o que se passa à minha volta e ter tudo na minha mão. E percebi que todas as canções neste disco, de uma maneira ou de outra, falavam do que me acontecia quando perdia o controlo. Ou seja, tenho uma canção que fala sobre o luto, tenho uma canção que fala sobre assédio e tenho uma canção que cantamos no concerto, a "Vai Ruir", que é sobre a sensação constante de perder o controlo— "Não há pior que correr para nada atingir, construir a saber que amanhã vai ruir"- portanto aquele estado quase depressivo de quando sinto que estou a perder o controlo e não tenho mão no que está a acontecer. Este álbum é para aqueles que precisam de controlo e que, como eu, não sabem lidar muito bem com a falta dele ou com a perda do mesmo.
Tens alguma música preferida?
Uma música preferida.... acho que é a primeira vez que não é tão óbvio a minha preferida, nos outros discos tinha sempre uma ou duas que gostava mais e isso quer dizer que essas estavam acima das outras. Neste disco, a minha preferida tem vindo a mudar muito, e isso é um bom sinal! Gosto muito da "Lembra-me de respirar", a canção sobre o luto. Também gosto muito da música escrita pela Luísa e também da que dá nome ao álbum. De qualquer maneira não é tão intervalado como no meu primeiro álbum, por exemplo, quando a “Multidão” era nitidamente a minha preferida e para mim estava acima das outras todas.
E singles?
Olha, está tramado. Estávamos a ver se conseguíamos, e em que momento conseguíamos apoio das rádios. E, nesse sentido, estava a espera que as rádios escolhessem um single para eu poder escolher o segundo, porque se as rádios escolherem um single que eu acho que vai mais de acordo com o álbum então fica esse e depois eu escolho outro qualquer que me apeteça, mas se as rádios escolherem o single mais comercial e que se calhar não tem tanto a ver com o álbum então para mim o segundo single tem de ser uma música que seja a cara do disco.
E videoclipes?
Ainda não temos fechado o single por isso ainda não sabemos quais vão ser ou como vão ser os videoclipes mas estou a trabalhar com esta equipa e tenho a certeza que me vão ajudar e vai ficar muito bem.
Já tens a parte visual deste disco pensada?
Vamos fazer a sessão fotográfica do disco daqui a duas semanas, já temos perfeita noção do que queremos, tem tudo a ver com o nome. E acho que está bem pensado, acho que não foi feito ainda e estou com uma equipa criativa muito especial mesmo— a Ego Creative Studio. Vai ser tudo em volta da ideia do controlo, aliás, da perda do mesmo.
Entre os teus dois EP’S nota-se alguma transformação já. Em que é que este álbum se distingue dos dois EP’s?
Vem um maior acordo entre o pop e o som mais acústico e a formação jazz: é quase um ponto no meio, sólido, entre a sonoridade dos dois outros discos. E depois, por outro lado, as letras deste disco destacam-se em relação aos outros dois— são mais sérias, mais concisas, mais adultas, nesse sentido acho mesmo que o disco se diferencia. Tenho um texto sobre isso que posso ler: “2023 é o ano do meu primeiro álbum. Este disco marca o grande passo de entrada numa personalidade artística mais definida e assertiva. Fala de todas as vezes em que eu, e no fundo todos nós, me agarro incessantemente à necessidade de controlo dos meus dias e do meu caminho e do facto consequente de ser relembrada de que nem tudo está nas minhas mãos e o tapete é retirado nos momentos menos esperados: o luto, as opiniões alheias, as novas amizades, os assédios. Este disco é descritivo relativamente àquilo que aconteceu ou acontece e resolve apontar para o futuro na esperança de que essa necessidade de controlo esmoreça e a imprevisibilidade seja recebida como previsível; no entanto, na certeza de que algo em mim e em nós teme a espontaneidade. As músicas são elevadas ao seu exponencial máximo através do recurso à música orgânica (gravamos todos ao mesmo tempo): os instrumentos, descalços da máquina e das regras, servem as produções orgânicas que permitem que nenhum concerto seja igual ao anterior. Cada instrumentista utiliza a sua voz e a sua apreensão daquilo que é a minha visão e fá-lo naquilo que é o requinte e o rigor da banda que mantemos. Os solos, o interplay e a procura dos limites da beleza-ela ilimitada— tornam as dinâmicas, os caminhos e direções uma decisão de banda e decidimos sempre em prol do que temos à nossa frente, da reação, de quem nos ouve e da energia da sala porque temos espaço para isso. Este meu primeiro álbum casa a lírica mais aperfeiçoada à melhor música que eu, aos dias de hoje, na fase em que vivo, podia executar. Cada canção é peça de roupa e em 2023 quem de melhor para me vestir do que de mim mesma.”
E aqui está a questão, é a melhor música que podia ter escrito. Eu deitei muita música ao lixo. Eu devia ter umas 30 ou 40 músicas e no disco estão 10. Eu trabalhei mesmo para dar o melhor de mim mesma neste disco, não me questiono sobre nenhuma, sei que cada música que está naquele álbum tem o máximo de qualidade que eu poderia oferecer.
O que te trouxe isso?
A minha necessidade de controlo. De poder fazer tudo o que está ao meu alcance para ter ali o melhor. As pessoas acham que com o tempo diminui, mas com o tempo só aumenta. Se calhar só diminui quando vêm filhos e aí tens mesmo de assumir que perdes o controlo e os entregas à infância.
E para a pergunta que todos esperam… para quando podemos esperar o álbum?
Estamos um bocadinho atrasados, é a música a funcionar, só sei dizer que sai depois do verão.
Para terminar…
Como é ser músico em Portugal?
Não se ambiciona ser rico. E eu ainda tenho sorte de ser cantora, um cantor tem muito mais possibilidade de ganhar bem do que um pianista, por exemplo. Na música clássica é diferente, claro, ganha-se muito melhor do que em qualquer outro género. Um pianista de um artista, ganha muito menos que o próprio. Portanto tem de se desdobrar noutras profissões. Daí ser importante treinar as vertentes todas, eu dou aulas de canto e de escrita de canções a adolescentes, trabalho a vertente de arranjadora de vozes, etc.
Como é lançar um álbum em Portugal na era do streaming?
Por um lado, o streaming veio democratizar a música. Quem quiser pode lançar o que quiser. Por outro lado, tenho mesmo de fazer o melhor possível. As plataformas já estão cheias de músicas que até entretêm e até são bonitas— a oferta é tanta que tens mesmo de te destacar de alguma forma. Também tenho pena de se perder a parte física , antes tinhas de pensar nas fotografias, nas partes da letra que imprimias e isso perdeu se um bocadinho. Eu tento manter isso, na música sou um bocadinho “à antiga”, mas por exemplo nos outros dois discos não houve possibilidade de imprimir físicos, os álbuns só estiveram nas plataformas de streaming e correu bem.
Como projetas a tua carreira, onde te vês daqui a 10 anos?
Por acaso, tenho mais necessidade de controlo sobre a qualidade do que sobre o caminho. Às vezes perguntam-me em que palcos gostava de me ver e eu não sei bem. A coisa mais importante é que eu quero, daqui a 10 anos, estar a viver bem disto. Agora ainda é muito precário, ainda sou muito pequena. Acho que, daqui a 10 anos, não preciso de ser rica, não preciso de encher salas, mas gostava de viver bem disto e gostava de ter mais qualidade e de ser mais reconhecida e poder colaborar com artistas brasileiros, por exemplo. Não nivelo pelos números ou pelo dinheiro que dê, mas sim por uma coisa que não se explica. E espero daqui a 10 anos ter uma data de coisas que não se explicam.
Por fim, se tivesses de escrever um artigo de sugestões culturais para o Tribuna, o que incluirias?
Eu sou péssima a escolher “preferidos” mas recomendava qualquer coisa do Christopher Nolan (sou completamente fã) e recomendo o Interstellar. No entanto, acho que o filme que mais me move é o The Help (As serviçais). Para mim estes dois são filmes de ver todos os anos. Livros, adorei a Ilustre Casa de Ramirez, do Eça de Queiroz, e, neste momento, estou a ler Jesus Cristo Bebia Cerveja do Afonso Cruz. Um romance que adorei, do Ildefonso Falcones, é A Catedral do Mar, é lindo.
Ana Neri Moreira
Departamento Cultural
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