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Uma Conversa com o Homem que Sonhou em Ser Palhaço - Grande Entrevista a Ruy de Carvalho

Foto do escritor: Mariana Resende, Marta TorresMariana Resende, Marta Torres

O nome Ruy de Carvalho não é estranho a nenhum português: nasceu no Bairro do Castelo, em Lisboa, em 1927 (“São 97 anos e 9 meses. Faço anos a 1 de Março e este ano é bissexto, então tenho mais um dia. Vejam lá a idade que eu tenho”). Estreou-se profissionalmente no Teatro Nacional, contracenou com os mais ilustres nomes do teatro português, vestiu a pele de centenas de personagens e é o ator mais velho do mundo em palco, nunca descurando da ligação da política com a cultura e mantendo uma voz ativa em várias questões sociais. 


Filho de pai trasmontano, que o trazia à cidade invicta, foi diretor de um teatro no Porto, em 1963, o que certamente muito o ajudou a poder afirmar que conhece o Porto melhor que nós. Nunca abandonando um tom bem disposto, relembrou momentos passados na Pensão do Bolhão e no Mercado, referindo que “as pessoas eram muito simpáticas e muito engraçadas”. 


Fará 2 anos em cena, com a peça “Ruy, a História Devida”, no dia 18 de Janeiro, regressando ao local onde estreou, o Auditório Taguspark. Sentindo-se “livre de trabalhar enquanto tiver reflexos, as pernas fletirem e a cabeça pensar e decorar”, acrescenta que terá muita pena de um dia deixar de servir as pessoas, os seus semelhantes. 


  1. A obra “O render dos heróis”, do seu amigo próximo, o autor José Cardoso Pires, foi o projeto da sua vida. Ruy interpretou o papel principal de um cego que representa o português, que vê quando quer e é cego também quando quer. Parece que esta cegueira acompanha, ainda hoje, o nosso país. Colocando a esperança de mudança na nossa juventude, de que forma é que, na sua opinião, um jovem deve alimentar o seu espírito?


No fundo, temos verdadeiramente de “render os heróis”, mas esperemos que os heróis sejam sempre melhores que os anteriores. Hoje, os heróis têm de ser os jovens, a juventude tem de conquistar os lugares que alguns dos nossos antepassados estragaram. Tenho esperança que vocês (jovens) consertem o que está estragado!


A juventude tem de ter o domínio do nosso país, serão os jovens que irão dirigir o nosso país, com o coração e, sobretudo, com inteligência.


Nada se resolve com gritarias ou pancadarias, como, infelizmente, assistimos atualmente no mundo: qualquer dia acontece o 28 de maio outra vez! Os jovens fazem tantas asneiras às vezes que qualquer dia levam com a ditadura de novo!


Eu não quero isso de volta, eu quero viver em liberdade e em democracia. Nunca se esqueçam, liberdade é respeito! É respeitar a opinião dos outros e, acima de tudo, respeitar a nossa própria liberdade, libertando-nos de tudo aquilo que seja mau. No fundo, temos de procurar curar o nosso sistema nervoso. A liberdade é o nosso Ministério da Cultura e o povo é quem mais ordena!


  1. Escreveu José Saramago, numa carta para a sua avó Josefa, “e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”. Ruy sempre se mostrou como um entusiasta pela vida, afirmando mesmo que “o espírito não tem rugas” e que no interior ainda se sente como um jovem de 18 anos. O que o fez manter esse espírito jovem e a ânsia de viver ao longo da sua vida?


É preciso mantê-lo e recomendo que vocês também o mantenham. Recomendem aos vossos jovens amigos que mantenham sempre um menino de 18 anos cá dentro


Não pensem na morte, não vale a pena, que a morte é certa. Portanto, têm de pensar é na vida. Viver a vida, muito curta ou muito comprida. A minha é enorme, como vocês já viram, tenho quase 98 anos, mas não penso na morte, não vale a pena. Ela chega quando tiver de chegar, eu não fico cá para a açorda como costumo dizer. Recomendo que conservem a vossa vida, sempre no presente


  1. Apesar de atualmente entender que “já não faz o que quer, mas o que querem que faça”, não restará espaço para desobedecer um pouco a essa ideia e desempenhar um papel que deseja desde há muito, o papel de um palhaço, com as suas qualidades e defeitos? 


Para ser franco, já fiz o papel de palhaço e até sou patrono dos palhaços dos hospitais, portanto faço de palhaço toda a minha vida!


Fiz uma peça com o meu filho que, aliás, foi escrita pelo meu genro, na qual era o palhaço de mim mesmo. Tanto eu como ele éramos a mesma pessoa, mas eu era o palhaço mais velho e ele a sua versão mais jovem. O palhaço mais velho dizia para o mais novo: “Não te preocupes que vais chegar lá", e na verdade ia, porque todos nós chegamos a velhos!


  1. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida e que sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança. Conquistou o coração dos portugueses, representou os mais ilustres papeis do teatro, viveu uma grande história de amor com a sua querida Ruth e pôde partilhar o palco com o seu filho e o seu neto. Se pudesse conversar com o Ruy de 20 anos, dir-lhe-ia que os seus sonhos foram realizados, ou ainda há lugar para o sonho na sua vida?


Normalmente os meus sonhos foram realizados. Eu sonho sempre para bem, não sonho para mal. Procuro sempre corrigir o que está mal, sobretudo em mim. Quando sinto que me corrigi, peço aos outros que corrijam também os seus próprios erros. 


Nós podemos estar sempre a corrigirmo-nos e a mudar a maneira de conviver com os outros. Isso é que se chama liberdade e isso é que se chama democracia.


  1. Desde sempre, referiu que o seu objetivo era servir o público português. Aos 97 anos e 9 meses, não restam dúvidas quanto à concretização desse propósito. O ator mais velho do mundo em atividade é português! Não querendo desmerecer esse seu lado, que o preenche quase totalmente, o que é que Ruy, enquanto mero mortal, gosta de fazer nos tempos livres, num domingo normal, em casa, em família? O que o torna pessoa para além de ator?


Bom, o que me torna pessoa além de ator é conviver com a minha família de teatro e com a minha família de casa. Tenho filhos, netos e bisnetos, tenho uma grande família, e vou, por exemplo, passar o Natal e o Ano Novo com eles. 


Tenho três netos e um deles, o Henrique Carvalho, por acaso, também é meu colega de profissão. Outro é piloto aviador e um é engenheiro geólogo. O último gosta de tirar gás e petróleo, mas ninguém o deixa cá em Portugal! Dizem que têm medo de que essa atividade estrague as praias, mas depois são as pessoas quem as estraga, ao deitar lixo para o solo.


Portugal tem o maior mar do mundo, o chamado “Mare Nostrum” e, portanto, deviam deixar o meu neto procurar o gás e o petróleo, porque dessa forma tornar-nos-íamos num país mais rico.



Não cabem em si todos os aplausos, todas as homenagens, todas as palavras. Fez do palco a casa onde acolheu um país inteiro, que, inquestionavelmente, o admira. Afinando-se as luzes e correndo-se o pano, é um exemplo de vivacidade, um homem que desafiou as limitações associadas à idade e mostrou ao mundo o que é o amor pelas artes e pela profissão. 


O avô João do “O Inspetor Max”, o “Velho” no “O Assalto”, o Lázaro Lafourcade, o Rei Lear... o Ruy de todos os portugueses. Por tudo o que deu por nós e para nós, devemos seguir a sua palavra: viver a vida com intensidade, conhecer a utopia e perder o medo.


Mariana Resende e Marta Torres Departamento Grande Entrevista

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