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Foto do escritorJoana Martins da Silva

Uma Luz ao Fundo do Túnel?


Fonte: Lorenzo Gritti | NPR

Querem fazer de nós deuses antes que mereçamos ser

homens. A ciência explicará tudo e nós não ficaremos mais

esclarecidos: ela fará de nós deuses atordoados.” - Jean Rostand


Os períodos de grande crise começam com um catalisador: uma faísca que ameaça a ordem social. Em plena segunda vaga, velhos dilemas retornam ao nosso dia-a-dia: Como travar uma avalancha de internados por covid-19? A quem se dá prioridade se não for possível socorrer todos os doentes? Quem salvar e quem deixar morrer? Salvar vidas ou a economia? Dúvidas, receios e ansiedades não faltam, mas a única certeza é mesmo a incerteza de um vírus que teima em não desaparecer; mas também é certo que depois da tempestade vem a bonança.


Em março de 2020, acordámos para uma nova realidade. Fomos bombardeados com imagens arrepiantes vindas do norte de Itália: a enchente de casos de COVID-19 levou os médicos a decidir sobre a vida e a morte dos seus pacientes, por não haver capacidade de resposta para os casos mais graves. À medida que o número de infetados aumentava, os ventiladores escasseavam. Giuseppe Berardelli, padre de 72 anos, que vivia na Lombardia, morreu depois de abdicar do seu ventilador (concedido por membros da sua paróquia) para o oferecer a um doente mais novo. Devido às regras impostas pelo governo italiano, não foi celebrado um funeral a Berardelli. ‘Morreu em quatro dias, num hospital, entre tantos doentes isolados e sós…’ Do mesmo jeito, a belga Suzanne Hoylaerts, de 92 anos, hospitalizada após ter dado positivo, renunciou à respiração assistida por ventilador com a seguinte instrução: Guarde-o para os jovens. Eu já tive uma bela vida”. Morreu dias depois.

“À beira do colapso”. Num cenário de pandemia, não há tempo para planear nada. Nenhum país dispõe de meios suficientes para satisfazer todas as necessidades de saúde, em qualquer circunstância, de todos os seus habitantes. Os meios escasseiam e os equipamentos esgotam-se e quando este número é inferior ao número de doentes que deles necessitam para sobreviver, chega-se a um momento dramático: ter de escolher quem beneficiará do ventilador, o que pode significar uma sentença de morte. Regressamos outra vez a este dilema.


Mas qual o critério mais justo? O dever de selecionar não pode consistir numa desresponsabilização de quem tem o poder. Como salienta Maria do Céu Patrão Neves, professora catedrática de Ética: A decisão é médica, mas os critérios têm de ser éticos”.


As orientações éticas exigem, de facto, a formulação de critérios que não violem a dignidade da pessoa humana. Para a bioeticista, “o critério de seleção de doente apontado como mais justo é o da expectativa de sobrevida, combinando o tempo ganho e a qualidade de vida (subjetiva) a usufruir” já que “a sua objetividade radica na interpretação de que consiste numa otimização dos meios (e não numa valorização de pessoas em detrimento de outras): se o problema que obriga à enunciação de critérios de seleção é a escassez dos meios, importa rentabilizá-los maximamente, o que se traduz no bem que podem produzir. Serão assim empregues nas pessoas que se perspetiva venham a ter melhores resultados”.


O primeiro país a definir critérios éticos para decidir sobre este dilema ético foi a Itália, que optou precisamente pela regra de dar prioridade àqueles doentes com maior probabilidade de sucesso e esperança de vida. No entanto, esta abordagem não está isenta de problemas. Como defende a ONG britânica Disability Rights, a hipótese individual de beneficiar de tratamento não deve ser influenciada pela forma como a nossa vida é percepcionada pela sociedade.


O peso da segunda vaga levou o sistema de saúde suíço a recomendar a quem pertença a grupos de risco que faça o seu testamento vital, especificando se pretendem que se prolongue a sua vida. Uma diretiva antecipada de vontade (DAV), também conhecida por testamento vital, corresponde a um “documento no qual é manifestada, antecipadamente, a vontade consciente, livre e esclarecida de um utente, sobre quais os cuidados de saúde que deseja receber ou não, por qualquer razão, caso não seja capaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”.


A angústia de uma clausura forçada leva-nos a pensar na transitoriedade da vida e na condição falível do ser humano. Tomamos consciência da nossa finitude: “Eu não quero acabar como um vegetal. Eu não quero passar pelo sofrimento de estar com falta de ar e não conseguir respirar", desabafava Susanne Degives à Televisão Pública Suíça (RTS), há alguns meses. A pandemia induziu um fluxo sem precedentes de pacientes em unidades de cuidados intensivos levantando questões éticas não apenas em torno da triagem e retirada de equipamentos de suporte de vida, mas também em relação às visitas familiares e à qualidade dos tratamentos paliativos.


Fonte: The Spectator

Um ano após ter sido detetado o primeiro caso de coronavírus em Wuhan, na China, naquela que tem sido uma corrida inédita da ciência, os laboratórios conseguiram (pelo menos até à data) desenvolver três vacinas com eficácia superior a 90%. Há otimismo quanto à sua disponibilidade futura. No entanto, é provável que a sua distribuição seja limitada, pelo menos numa fase inicial. Até grande parte da população estar vacinada, a nossa vida não será a mesma. Por agora, não há fuga possível. Mas temos sempre o conforto de haver uma luz ao fundo do túnel.


A tendência após momentos de entropia social, guerras, desastres ou calamidades consiste em retornar às antigas rotinas. Com a miragem de um mundo pós-pandémico cada vez mais presente, sente-se o frenesim e o ensejo de quem pretende regressar ao “velho normal”. Mas a que custo? “Fechado o capítulo da pandemia”, diz Walter Osswald, médico e professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em entrevista ao Público, “seria irresponsável fazer tábua rasa do sofrimento, dor e prejuízo para retomarmos os velhos hábitos, a anemia social, o individualismo exacerbado, a tentação do domínio total das forças da natureza, o cientismo acrítico”.


Por sua vez, com uma visão mais reformista, Viriato Soromenho-Marques, catedrático da Universidade de Lisboa, considera que "a normalidade, como a conhecemos antes, não voltará a reconstituir-se (...) O ‘novo mundo’ que nascerá depois da crise, de duração e dimensão difíceis de aquilatar, vacilará entre a entropia e a reforma. Se olharmos para as actuais lideranças das democracias, de Donald Trump e Boris Johnson, a Jair Bolsonaro, passando pelos paroquiais e assustados regedores dos países da União Europeia, é difícil encontrar sequer a sombra da inteligência e capacidade de coordenação necessárias para mitigar os danos e sofrimentos inevitáveis (...) O nosso absoluto dever é lutar pela reforma. Precisamos de uma grande estratégia mundial para garantir a paz, reinventando o nosso habitar económico e social da Terra”.


Em termos políticos, os regimes democráticos estão sob pressão dos movimentos populistas de extrema-direita, tendencialmente céticos face ao globalismo e a favor de um nacionalismo e unilateralismo exacerbado. Na década que se seguiu à crise financeira global de 2008, uma onda de protestos e radicalismo atingiu e desafiou muitas das normas e valores enraizados do discurso político da Europa: da crise dos migrantes ao crescimento da extrema-direita na Alemanha, passando pelo estabelecimento de regimes autoritários na Europa Central até chegar aos movimentos nacionalistas e separatistas em Espanha, não esquecendo o Brexit ou a ascensão do populismo em Itália e França. Os políticos foram objeto de um ódio concertado por parte de uma franja de descontentes, que os considerava desconectados com a realidade, querendo apenas perpetuar o ‘status quo’.


A pandemia revelou as muitas fragilidades do centralismo político, incapaz de se reinventar na sua moderação. Paradoxalmente às tendências liberais (no sentido europeu do termo), esta crise veio reforçar a importância da intervenção do Estado na economia e na construção do Estado Social. Por outro lado, escancarou e aprofundou as assimetrias sociais e acentuou as fragilidades do capitalismo ao mesmo tempo que ressaltou a busca por lideranças fortes e sensatas, personificadas em estadistas como Angela Merkel ou Jacinda Ardern.


Yuval Noah Harari, historiador israelita e autor do best-seller internacional ‘Sapiens: Uma breve história da humanidade’, salienta que: “neste tempo de crise, enfrentamos duas escolhas particularmente importantes. A primeira é entre a vigilância totalitária e o empoderamento do cidadão. A segunda é entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global”.


Com a angústia do isolamento, descobrimos a nossa interdependência perante os outros; assumimos uma certa co-responsabilidade comum ao reavaliarmos os nossos valores morais, éticos, económicos, políticos e ambientais. Como relembrou em maio deste ano o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus: "A pandemia é uma lembrança da relação íntima e delicada entre as pessoas e o planeta. Todos os esforços para tornar nosso mundo mais seguro estão condenados ao fracasso, a menos que abordem a interface crítica entre as pessoas e os agentes infecciosos e a ameaça existencial das alterações climáticas, que está a tornar a nossa Terra menos habitável."


Na pior das adversidades, a crise também evidenciou o melhor da nossa sociedade: a bravura dos profissionais de saúde, a solidariedade entre vizinhos, importância de trabalhadores-chave para a manutenção da ordem social, a solidariedade internacional no auxílio de emergência para a pesquisa de tratamentos e vacinas. Não podemos voltar a repetir os mesmos erros num futuro próximo; devemos evitar um novo desastre à escala global - seja ele desencadeado pela próxima pandemia ou pelos crescentes danos ambientais e mudanças climáticas. Não podemos ‘voltar’ simplesmente ao normal sem alterarmos a forma errática e consumista como vivemos em sociedade.


Num mundo cada vez mais digitalmente formatado, é crucial estabelecer mecanismos de reaproximação interpessoal. Até lá, neste mundo a meio gás, onde os beijos e os abraços ficaram em suspenso- substituídos por máscaras e desinfetantes-, temos um horizonte aberto à nossa frente.


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