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Uma Saga sobre o Neoliberalismo

Foto do escritor: Jornal TribunaJornal Tribuna

Há um certo paradoxo no nosso tempo: quanto mais afirmamos o progresso e a modernidade, mais parece que a vida coletiva se desintegra. A promessa de liberdade e prosperidade que acompanhava o avanço do neoliberalismo tornou-se um espectro que paira sobre as nossas vidas, convertendo relações humanas em transações, cidadãos em consumidores, e trabalho em pura mercadoria. Perante este cenário, torna-se necessário não apenas compreender, mas dissecar este sistema que modela a nossa existência.


É com este objetivo que iniciamos uma série de crónicas sobre o neoliberalismo. Não porque nos fascine o discurso fatalista, mas porque entendemos que só ao iluminar as suas múltiplas facetas será possível compreender as consequências deste modelo para as nossas vidas. Este projeto não pretende ser conclusivo; pelo contrário, surge da consciência de que o neoliberalismo, sendo mais do que uma política económica, é uma lógica cultural e social que permeia todos os aspetos da existência contemporânea.


A Distopia do Neoliberalismo

Pouco se fala da distopia silenciosa que habitamos. Não há sinais óbvios de um regime autoritário, mas há um sistema que opera de forma mais insidiosa: o neoliberalismo transformou a vida num campo de competição constante, onde o valor de cada um é medido pela sua capacidade de produzir, consumir e se reinventar.

  • A ilusão de autonomia: Somos levados a acreditar que somos livres, mas a liberdade é medida pelas regras do mercado. Se não nos adaptamos, somos descartados.

  • A dissolução do coletivo: Comunidades inteiras desaparecem sob o peso da precariedade e do individualismo. A solidariedade cede lugar à meritocracia, uma narrativa que culpa os mais vulneráveis pelas suas condições.

  • A crise da subjetividade: Não há espaço para fragilidade ou dúvida; somos todos obrigados a sermos empreendedores de nós mesmos, enquanto a ansiedade e o vazio existencial tomam conta de tudo.

Esta distopia não é declarada, mas está inscrita nos ritmos das nossas vidas: nos prazos apertados, na pressão de estar sempre disponível, na necessidade de "render".


Primeira Crónica: O Estado Atual do Trabalho

O primeiro capítulo desta saga de reflexão aborda um dos principais eixos do neoliberalismo: o trabalho. Mais do que uma relação económica, o trabalho é um espelho da sociedade. No neoliberalismo, porém, esse espelho reflete um retrato desumano.


  1. O eufemismo do "colaborador": Os locais de trabalho adotaram uma linguagem que tenta mascarar a assimetria de poder entre empregadores e empregados. Substituímos "trabalhador" por "colaborador", como se a relação laboral fosse um ato de parceria e não uma troca desigual. Este jogo de palavras é uma forma de controle subtil, que evita reconhecer a dependência do trabalhador face ao empregador.

  2. Precariedade como norma: Prometeu-se liberdade através da flexibilização do trabalho. Mas o que significa esta "flexibilidade"? Contratos temporários, salários baixos, ausência de estabilidade. Em vez de libertar, esta lógica empurra milhões para a insegurança constante, enquanto lhes exige gratidão por um emprego que pode desaparecer a qualquer momento.

  3. A tirania da produtividade: O culto da produtividade e do desempenho criou um ambiente de constante vigilância. Não trabalhamos apenas para viver; vivemos para trabalhar, num ciclo exaustivo de métricas, relatórios e objetivos que ignoram os limites humanos. Burnout e crises de saúde mental são sintomas de um sistema que esgota o indivíduo.

  4. Tecnologia e vigilância: A tecnologia, que poderia ser um aliado na melhoria da qualidade de vida, transformou-se numa ferramenta de exploração: aplicações rastreiam cada movimento; algoritmos decidem quem é eficiente e quem não é. Trabalhar, neste contexto, significa estar constantemente vigiado e avaliado.


O Porquê Desta Saga

Decidimos escrever esta série porque o neoliberalismo não é uma realidade imutável. A sua força reside na sua capacidade de se disfarçar como inevitável. É por isso que nos propomos a expor as suas contradições, a refletir sobre as suas consequências e a desafiar o que tomamos como "natural". Convidamos-vos a juntar-se a esta viagem crítica, não para aceitar as respostas que apresentamos, mas para construir, connosco, um pensamento coletivo. 


Diogo Lamego e Leonor Mendonça

Departamento Crónicas

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