Parece importante relatar que, no passado dia 14 de outubro, uma bizarra viagem ao passado ocorreu na FDUP. Será aconselhável chamar todo e qualquer cientista do paranormal após o senhor Deputado Rui Afonso, do Chega, exclusivamente com a ajuda das suas palavras, nos transportar para a realidade social do século XIX, ou o que é ainda, aparentemente, a conceção de um mundo perfeito para o senhor Deputado.
No âmbito do Orçamento de Estado, mas também de modo a refletir as diferentes posições ideológicas dos partidos reunidos, foi dada a oportunidade a representantes dos partidos com assento parlamentar de discutirem assuntos como a saúde, a educação superior e o alojamento, num debate dinamizado pela Associação de Estudantes. A resposta do senhor Deputado Rui Afonso, ao ser questionado sobre medidas para atingir a igualdade de género, ficará para sempre gravada na minha memória. Diremos até que, tal foi o meu espanto, que é um milagre não ter engolido sem querer uma mosca.
Foi certamente cómico ouvir uma narrativa, digna de um manual de boas maneiras da Mocidade Feminina, vinda da mesma pessoa que afirmou este ano que os portuenses são “avessos à mudança”. À ideia apresentada pelo senhor Deputado de que a maior dádiva na vida de uma mulher é ter filhos, faltou, talvez, adicionar que a maior honra da vida de um homem é servir na Guerra Colonial, e que a dos filhos é submeter-se ao poder do chefe de família.
Na ligação entre o seu mundo e o nosso, muito daquilo que Rui Afonso disse sobre o Orçamento ficou perdido pelo caminho, mas aquilo que conseguiu chegar – pelo volume em que se fez ouvir – pôs-me a pensar em como alguém pode ser tão confiante nas suas falácias. A relutância em ter um discurso coerente sobre a habitação, a saúde e o ensino, as despropositadas declarações sobre as pessoas trans e, enfim, a misoginia já evidenciada, não marcaram falta.
Curiosamente, a mesma evolução humana que permitiu a gravidez como a conhecemos hoje – tão apreciada pelo senhor Deputado – não permitiu ainda a extensão dos valores da ponderação e bom-senso a todos os homens. Estas qualidades servem muito bem qualquer pessoa, mas, talvez de um modo mais importante, qualquer político. Acredite, senhor Deputado, facilitariam em muito a sua vida, para não falar da nossa, que o tivemos de ouvir.
Lembro-me agora que, quando confrontado, por uma aluna, com as suas afirmações ignorantes, o senhor Deputado referiu que não deveriam ser descontextualizadas. Caro senhor Deputado, fomos nós o contexto em que elas foram proferidas, a faculdade com algumas das melhores alunas do país, que tiveram de ouvir as suas tristes declarações sobre o que seria a maior dádiva na vida delas, como se, de todas as pessoas, fosse o senhor o escolhido para o proclamar!
No final, contudo, a mensagem do dia 14 parece ter sido bem clara, e a mesma de sempre: o Chega não tem nada a oferecer - nem ao país, nem à política, nem aos estudantes. Recomendo apenas que, tal como em jantares de família, nos quais temos de ouvir um certo familiar abrir a boca, no próximo debate sejam distribuídas aspirinas aos ouvintes antecipadamente, não vão sair a sentir-se tão doentes como eu (também, que efeitos secundários poderia esperar ao viajar 200 anos para trás no tempo?).
Oxalá que, à saída do debate, o autocarro do Chega, que Rui Afonso tão cordialmente partilhou com os seus amigos neonazis, o esperasse para o levar de volta a Lisboa. Afinal de contas, o senhor Deputado não deverá querer passar muito tempo connosco, uns pobres conservadores portuenses, tão “avessos à mudança”. Enfim, havemos de trabalhar nisso! Até lá, que o mesmo caminho que o trouxe à FDUP o permita fazer a travessia de volta, ainda que o bilhete tenha como destino um mundo de 1 só homem.
Manuel Brito e Faro Departamento Crónicas
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