O filme Vem e Vê, lançado em 1985, é da autoria de Elem Klimov (1933-2003), um cineasta bielorrusso que dedicou muito do seu trabalho ao estudo da complexidade da condição humana em tempos de conflicto. O realizador testemunhou, ele próprio, enquanto adolescente, a marca que os horrores do militarismo do Terceiro Reich deixaram na frente europeia de Leste da Segunda Guerra Mundial.
A obra decorre em 1943, na Bielorrússia, e perspectiva a invasão nazi à nação soviética com toda a sua brutalidade e visceralidade – que levou muitos espectadores a denunciarem o carácter perturbador do retracto. Descrito pela crítica como uma obra-prima visual, o filme adquiriu um estatuto de culto no que toca à cinematografia de guerra, em especial pela conjugação das suas imagens aterrorizantes com momentos de surrealismo cinemático.
A narrativa foca-se num jovem de 15 anos, Florya, que, na tenra idade associada à descoberta do mundo em redor, vê-se empurrado para empunhar uma espingarda e juntar-se à resistência anti-nazi. A sua inocência é dilacerada quando contrastada com as atrocidades indescritíveis que o adolescente presencia. A brutalidade da mais sangrenta guerra na história humana, as violentas tácticas utilizadas pelos alemães e a abundante morte são postas a nu aos olhos de um cândido jovem, ansioso por viver.
Klimov transforma cada assento tomado pelo espectador numa experiência sensorial e emocional, que ultrapassa em grande medida o âmbito do comum filme bélico. Além da pormenorizada caracterização dos terrores relatados, destaca-se uma profunda análise psíquica de quem os presencia. Para tal, a realização recorre a imagens aflitivas e a uma banda sonora angustiante, que conferem a cada cena a capacidade de transmitir fielmente o desespero e o tormento vivido pelos civis no devastado solo bielorrusso.
Verifica-se ainda uma tensão entre a representação visual da beleza paisagística da Bielorrússia e a enorme destruição causada pela guerra, em oposição. Tal panorama aprofunda a desolação que acompanha todo o filme, e que é também visível na transformação de um idílico cenário de flora verdejante num campo de batalha infernal.
A obra aborda, ainda, temas com um enorme pendor político, apostando na reflexão de quem a analisa ao abarcar questões como a responsabilidade histórica do conflicto e as narrativas dos vencedores. São, por isso, repudiadas quaisquer glorificações ou apoteoses à “Grande Guerra Patriótica”¹, pela necessidade de a mostrar com crueza e sem ilusões.
O preenchimento cuidadoso das duas horas e trinta e seis minutos que perfazem o filme é traduzido numa experiência difícil e claustrofóbica, mas também gratificante e transformadora. Ao acentuar a necessidade de compreender e de “sentir” as calamidades do passado, Klimov impõe, simultaneamente, a urgência de contrastá-las com as suas origens e devidas responsabilidades. Tudo isto em simbiose com um inesquecível esboço da essência humana, numa época em que fora repetidamente posta em causa.
¹ (em russo: Вели́кая Оте́чественная война́) designação atribuída pela URSS ao esforço de guerra soviético durante Segunda Guerra Mundial
José Miguel Barbosa
Departamento Cultural
Comments