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Foto do escritorGuilherme Alexandre

Violência Obstétrica

Assinalamos, no passado dia 25 de novembro, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Assinalamos, mas não celebramos, porque ainda há muito que nos impede de celebrar: em Portugal e no Mundo, ainda não existe uma efetivação da igualdade dos direitos humanos para ambos os sexos. Ser mulher ainda significa ser menos ouvida, pior paga, mais emocional e menos competente; ainda significa ter mil e um cuidados para sair à noite, ainda significa não saber em quem se pode confiar e, com vergonha, ainda significa ser sistematicamente violentada por quem tem o papel de cuidar e proteger.


O que é?


Em sentido formal, é a violência contra a mulher grávida, na forma de abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação, desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas necessidades da paciente.


Em sentido material, é um tipo de violência de género, em que existe a apropriação do corpo da mulher grávida por profissionais de saúde (não apenas médicos) durante a gravidez, no parto e nos cuidados que se seguem.


A Ordem dos Médicos contesta o uso do termo «violência», propondo que se utilize a expressão “maus-tratos”, descrevendo a primeira como «agressão física ou psicológica, na forma de abandono, tortura, espancamento, mutilação ou mesmo homicídio» e a segunda como «situações de abuso físico ou verbal, falha de prestação de cuidados adequados, negligência, discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher, depois de devidamente esclarecida». Aqui, comete um erro. Na verdade, comete uma afronta aos direitos e dignidade das mulheres e pacientes, pois argumenta que, em Portugal, existem apenas maus-tratos obstétricos, remetendo a violência obstétrica para outras partes do mundo – ignorando, assim, relatos e queixas que se configuram nos termos de violência obstétrica.


Práticas como o «ponto do marido», indução do parto na forma de cesariana e recusa de alívio da dor não são pouco comuns no nosso país, segundo não só relatos, como o European Perinatal Health Report, correspondem a violência. Por outras palavras, decidir contra o consentimento informado e sem autorização de uma paciente viola a autonomia corporal e a autodeterminação corporal e reprodutiva, e negar alívios da dor sem justificação cientificamente fundada para tal são atos e omissões pautados pela violência, pelo desrespeito e abuso de poder face a pessoa vulnerável. Além disso, não concorda a Ordem dos Médicos que dizer a uma mãe «veja lá se quer matar o seu bebé» como forma de coagir grávidas a certos tipos de intervenções desnecessárias (ou mesmo que fossem necessárias, note-se a proporcionalidade e necessidade da utilização desta expressão) corresponde a «agressão psicológica»? Não sabemos já (nem sabem os profissionais) do stress envolvido na gravidez e trabalho de parto e nas consequências a curto e longo prazo que pode implicar?


Retratos das vítimas


O inquérito “Experiências de Parto em Portugal” (2012-2015), realizado pela APDMGP e ao qual responderam mais de 3.800 mulheres, revela que 43,5 por cento das mulheres inquiridas não tiveram o parto que queriam. Na sua segunda edição (2015-2019), teve 7555 respostas válidas. Sobressai esta percentagem: 30% das mulheres afirmaram ter sido vítimas de alguma forma de desrespeito, abuso ou discriminação, sendo que as intervenções hospitalares não consentidas são apontadas como a forma mais recorrente dessa violência.


Segundo Isabel Valente, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, os tratamentos são por vezes afetados por discriminações «com base na idade da mulher, na sua etnia, no seu estatuto social, nas suas crenças, na sua massa corporal». Isto deve-se não só a crenças e atitudes dos próprios profissionais, mas por vezes também à maior facilidade em que existe se a pessoa não estiver acompanhada e não possuir meios de resistência e salvaguarda efetiva dos seus direitos.


Direito ao acompanhamento como algo importante limitado pelas regras da pandemia


Assim, o acompanhamento na gravidez é um fator essencial para garantir a segurança das futuras mães, além de todos os benefícios de saúde evidenciados, como a redução de cesarianas, trabalho de parto menos doloroso e, no geral, uma experiência de gravidez mais satisfatória. Nesse mesmo sentido, a Deputada Cristina Rodrigues propôs na Assembleia da República a abertura de casas de parto anexas aos hospitais para grávidas de baixo-risco e que, não precisando de tantas intervenções e medicamentos, poderiam, assim, ter melhores cuidados e acompanhamento por doulas e parteiras.


Nesta pandemia, no entanto, não foi só a inação do Governo que impediu melhores cuidados obstétricos, mas sim a sua ação que os pôs em risco através das medidas desenhadas para combater a COVID-19, tendo o partido PAN denunciado que «têm sido muitas pessoas a narrar o facto de ser barrada a presença do acompanhante em vários hospitais do Serviço Nacional de Saúde, assim como a separação de mãe-bebé no momento do nascimento, em mulheres infetadas e não infetadas. Foram aprovados quatro projetos de resolução, originados do PAN, Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda e Deputada Não Inscrita Cristina Rodrigues, recomendando ao Governo que efetivasse o direito a acompanhante em todas as fases da gravidez.


O futuro


Se queremos evoluir enquanto sociedade democrática, é necessário perceber que aquilo que afeta um grupo de cidadãos tem de ser relevado por todos os outros e, além das ações concretas, é urgente que estejamos atentos ao tema e a todas estas perturbações dos direitos que subjazem à maternidade, para que os possamos proteger. De facto, estes direitos são tão fundamentais enquanto bem jurídico, sendo proposta a criminalização (que merece leitura!) de várias condutas que correspondem a violência obstétrica pela Deputada Cristina Rodrigues:


«Se as intervenções clínicas resultarem na mutilação genital da mulher, em violação das leges artis e criarem um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo, a moldura penal prevista é a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.»


Com uma abordagem diferente e mais pedagógica, destaca-se o anteprojeto de lei do Bloco de Esquerda, que pretende a inclusão desta matéria nos currículos escolares e a afixação de informações nos estabelecimentos de saúde para dar a conhecer aos utentes os seus direitos, assim como a criação de uma Comissão Nacional para os Direitos na Gravidez e no Parto.


Para avanços no Direito, teremos que aguardar pela próxima legislatura, mas para avanços na sociedade podemos já começar a trabalhar.


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