Na passada sexta-feira, dia 18 de dezembro, foi a vez da candidata às eleições presidenciais de 2021, Ana Gomes, subir ao «palco» para mais um «À conversa com…», iniciativa dinamizada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Nascida em fevereiro de 1954, Ana Gomes licencia-se em Direito no ano de 1979, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em 1980, ingressa na carreira diplomática, funções que suspende em 2003 para se dedicar à atividade política. Entre 1982 e 1986, viria a trabalhar como consultora para a Diplomacia ao serviço do Presidente da República Ramalho Eanes. Ainda como diplomata, serviu nas missões junto da ONU em Genebra e Nova Iorque, bem como nas embaixadas de Tóquio e Londres. Entre 1999 e 2003, foi chefe de missão e embaixadora em Jacarta, tendo acompanhado o processo de independência de Timor Leste e de restabelecimento das relações diplomáticas luso-indonésias. Militante de base do PS, foi membro do Secretariado Nacional do Partido Socialista (PS), responsável pelas relações internacionais (2003-2004). Entre 2004 e 2019, foi deputada no Parlamento Europeu.
Hoje, assume-se como candidata na «corrida» à Presidência da República.
Quais os pontos-chave em que a sua presidência se distanciaria da do Professor Marcelo Rebelo de Sousa?
A resposta de Ana Gomes surge automática: «Em vários».
Em primeiro lugar, não contribuiria para a «normalização de formações políticas que assumem querer destruir a Constituição e a Democracia». Isto, numa referência ao Partido «Chega!», parte integrante do acordo político celebrado nos Açores pelo PSD, CDS-PP e PPM, acordo que o atual Presidente da República admite que seja replicado a nível nacional. Neste contexto, faz referência aos vinte anos que experienciou sob o regime ditatorial, período que de nenhuma forma quer voltar a testemunhar. Conclui pela importância das lições que a História nos dá, aludindo, inclusive, ao caso de Hitler, que não tinha a maioria parlamentar, conseguindo «manobrar» e, no fundo, servir-se da democracia para chegar ao poder.
Por outro lado, estipularia como objetivo claro dar força às mulheres: empenhar-se-ia em estimular a sua chegada a cargos diretoriais, numa relação de paridade com os homens. Pensa que a sensibilidade específica do sexo feminino seria sem dúvida uma mais-valia nestes cargos.
Assumir-se-ia a favor de uma política de regionalização, apontando Marcelo Rebelo de Sousa como um dos grandes «boicotadores» deste propósito. Pensa ser fundamental um investimento na descentralização administrativa efetiva, na reorganização do país de forma descentralizada enquanto estratégia de desenvolvimento.
Focaria as questões ambientais, nomeadamente promovendo a transição energética, que tem repercussões em todas as políticas de desenvolvimento económico, designadamente na criação de emprego.
Quanto a questões laborais, assumiria um combate à precariedade. Defende que é «aqui e agora» que se devem encontrar oportunidades para os jovens em Portugal, evitando perdê-los para a emigração. Realça as virtudes desta aposta para as gerações «dos pais e avós», que sairiam igualmente realizados deste processo: promover-se-ia o sentimento de dever cumprido, de realização pessoal.
Por outro lado, destacando, embora, o facto de o Presidente Marcelo ter conseguido estabelecer a proximidade com os cidadãos, o que julga ser importante, pensa que isso «não chega»: um Presidente da República precisa de convocar todos para serem ouvidos (sindicatos, associações da sociedade civil, etc.). Neste contexto, para Ana Gomes, a concertação social seria também uma preocupação.
Como seria a sua atuação a favor da regionalização e da descentralização administrativa?
Para Ana Gomes, descentralização significa «usar o quadro legal que se tem para fazer mudanças na prática». A este propósito, reforça a importância do poder local enquanto «rede capilar», sem a qual o Estado central não teria capacidade de atuação. Acrescenta a relevância da iniciativa, da proatividade de autarcas locais e a eficácia acrescida do seu poder, mais conhecedores das particularidades da região e do seu território.
Para além disso, sublinha a necessidade de uma estratégia de repovoamento do território. Afirma veementemente que «o interior não é periférico» e que até será mais central se pensarmos do ponto de vista europeu e da proximidade à fronteira. Neste sentido, nota que as empresas aí instaladas têm uma facilidade acrescida do ponto de vista das exportações.
Conclui que esta falha a nível do poder local reflete-se, por exemplo, nas iniciativas transfronteiriças, que estão a ser perdidas por Portugal. Este seria, por isso, um foco de mudança na sua presidência.
Como pensa chegar ao eleitorado socialista que tenciona votar em Marcelo Rebelo de Sousa? Como vê o apoio à sua candidatura de figuras do Partido Socialista como Pedro Nuno Santos e Francisco Assis?
Não desvalorizando as sondagens, Ana Gomes diz não se condicionar por elas: caracteriza-as como «fotografias» com todas as características e táticas inerentes à captura de um dado momento. Pensa que, sendo um período muito atípico, ainda nada está definido e que muito se decidirá nos debates televisivos e radiofónicos.
Acrescenta que se sente acompanhada pelos socialistas: autarcas, elementos da JS, militantes de base, que revela terem ajudado muito no «processo obsoleto» que, a seu ver, constitui a recolha de assinaturas.
Não obstante, assume que a sua é uma candidatura independente que pretende captar todos aqueles que queiram «salvar», reforçar e regenerar a Democracia, independentemente da sua posição política mais «à esquerda» ou mais «à direita». Neste contexto, tem honra em ser apoiada por pessoas com outras sensibilidades dentro da família socialista. E isso inclui Pedro Nuno Santos e Francisco Assis.
No último Congresso do Partido Socialista, num exercício de citação de António Guterres, referiu que era «imperativo evitar o pântano». Está hoje o país mais perto do «pântano»? Que país gostaria de deixar daqui a cinco anos se fosse eleita Presidente da República?
Ana Gomes não tem a certeza de que hoje o país esteja mais perto do «pântano» referido por Guterres. Pelo contrário, aponta fases bem mais «negras» do país, como o caso de Sócrates (este terá sido, talvez, o ponto mais baixo do «pântano»), apontando ainda a «vergonha» que representa para o país o facto de este ainda não ter sido julgado. Acrescenta a estes maus períodos o governo da TROIKA em Portugal, governo que se «desfez de muitos ativos de extraordinário interesse público», como é o caso dos CTT e outras empresas que foram privatizadas, a seu ver, sem necessidade.
Assim, entende que o pior do «pântano» já passou, mas que continuamos «nas suas bordas». Para a candidata, ainda se perpetuam várias disfunções em áreas como a Justiça, por exemplo, ponto no qual acredita que fará a diferença se for eleita. É apologista de uma postura proativa, dentro da magistratura de influência acessível a um Presidente da República, devendo isto implicar, no caso da Justiça, uma permanente articulação com os diferentes operadores, um encorajamento «daqueles que querem fazer bem», uma insistência para com aqueles que não concedem os meios necessários.
Retratando Portugal como o «país dos megaprocessos», a «trabalhar para a prescrição», num panorama de grandes níveis de criminalidade financeira, assume o episódio do «assassinato de um cidadão ucraniano em instalações do Estado» como a maior ilustração de problemas estruturais que precisam de ser resolvidos. Portanto, uma vez eleita Presidente da República, a candidata assegura que tudo fará para combater estas «tremendas disfunções».
De que maneira a sua experiência profissional no quadro da União Europeia pode constituir uma vantagem no exercício do cargo de Presidente da República?
Ana Gomes vê a sua experiência, quer como diplomata, quer como deputada no Parlamento Europeu, como muito útil para uma presidência que primaria por «pôr Portugal no mapa», em articulação com o Governo.
Assume o enorme poder que um Presidente da República tem no plano das relações externas, tendo nomeadamente a facilidade de contacto com outros Chefes de Estado e podendo, por isso, procurar «convencê-los de certas perspetivas».
Não tem dúvida da existência de determinadas áreas que precisam de consenso a nível europeu. Nesse sentido, se se tornasse Presidente da República empenhar-se-ia em dar o «cunho português» na regulação europeia, sendo esta fundamental para a regulação a nível global. Exemplificando alguns assuntos de relevo, assinala a necessidade de investir na regulação das plataformas digitais, responsabilizando-as pelos conteúdos, nomeadamente através do desenvolvimento do RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados). Na área fiscal, entende impor-se uma harmonização fiscal a nível europeu que, em articulação com os EUA, contribua para uma neutralização das «offshores». Olha para a «fuga ao fisco» como uma matéria que lesa muito o país e para a qual não é despendida atenção suficiente por parte do Governo e do atual Presidente da República. Por isso, este seria outro ponto que reforçaria junto dos demais Chefes de Estado, no plano das relações externas.
Tem sido alvo de críticas às mensagens que publica na rede social Twitter. Pensa que isto pode ser prejudicial para a sua campanha?
A candidata começa por notar que, uma vez sendo Presidente da República, será extremamente seletiva e reservada naquilo que publica, naturalmente. Ressalva, no entanto, que ainda não o sendo, não abdica deste seu direito enquanto cidadã. Não acha que tenha prejudicado ninguém e acrescenta que o Twitter é a única rede social gerida pela sua pessoa. Relembra ademais o episódio recente em que visitou o Hospital Garcia de Orta, em Almada e que, ao escrever numa publicação o nome do médico que dá o nome ao Hospital, o corretor automático adicionou um «h» a «Orta». Tendo esse lapso ortográfico sido criticado nos comentários, Ana Gomes procura desfocar dessa questão, remetendo para o que verdadeiramente importa: a visita em si, por sinal, muito proveitosa.
Referiu que uma das suas preocupações enquanto Presidente da República seria «ilegalizar» o Partido «Chega!». Não pensa que, ao questionar a atuação do Tribunal Constitucional e do próprio partido de André Ventura, poderá estar a alimentar a atenção dada ao mesmo?
Para Ana Gomes interessa essencialmente rebater as ideias que considera «destruidoras» da democracia. Porém, retira a expressão «ilegalizar» da equação, até porque essa é uma competência do Tribunal Constitucional e não de um Presidente da República. Mas assume que este não deve abdicar de fazer juízos políticos em situações críticas, nomeadamente ao nível do Acordo realizado nos Açores, reiterando a possibilidade assim aberta de vir a ser replicado a nível nacional. A este propósito, nega o fundamento de que não havia alternativas: a seu ver, em última análise, dever-se-ia ter devolvido o poder ao Povo. Nessa base, e focando o partido de André Ventura, se fosse Presidente da República teria pedido à Procuradoria da República que promovesse a reapreciação da decisão de legalização do «Chega!».
Entendendo que a Constituição existe para ser cumprida e que as leis são para se aplicar, vê o «Chega!» como um partido racista e fascista, logo, «completamente incompatível com a Constituição». E refere em abono desta sua posição, duas normas da Constituição da República Portuguesa:
Art.º 46º, nº4 - Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
Art.º 10º, nº2 - Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política.
O triste episódio da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk «às mãos» do SEF veio realçar a necessidade da sua reestruturação. Como usaria o seu poder de influência neste ponto?
Ana Gomes pensa que foi positivo o ministro ter ordenado o inquérito da IGAI (Inspeção Geral da Administração Interna). No entanto, não compreende que depois do relatório ter sido conhecido não se tenham extraído consequências durante meses. A seu ver, o relatório da IGAI demonstrava que o problema era sistémico e não de «algumas maçãs podres», visto ter sido apurado que, para além dos três agentes diretamente envolvidos no assassinato, houve mais cerca de nove pessoas envolvidas no encobrimento. Assim, tende a concordar com a opinião de que o SEF nunca deveria ter sido criado como uma polícia, mas sim como uma estrutura civil para lidar com a regularização das questões dos imigrantes.
Para Ana Gomes, subscrevendo a posição do professor Rui Pena Pires, haveria vantagem em separar as funções de registo para efeitos de regularização de imigrantes das funções de controlo de fronteira e de combate ao tráfico de seres humanos; estas últimas, a seu ver, deveriam competir à Polícia Judiciária. Por isso, faria sentido pensar a separação destas vertentes no ato de reestruturação do SEF.
Por outro lado, não concebe que a reestruturação do SEF possa dar origem a uma fusão de todas as polícias nacionais numa única. Não porque não ache que não devesse existir um comando único ou uma estrutura de coordenação de funções, mas porque não lhe parece adequado que decisões destas sejam tomadas «a quente». Mesmo que seja necessária uma reformulação para combater a fragmentação das polícias, pensa que este não é o momento adequado para o fazer. O que, a seu ver, será urgente é dar às polícias existentes condições de operação, de dignidade e de capacidade de exercício de autoridade. Neste aspeto, menciona os baixos salários, a falta de equipamentos e a falta de recrutamento exigente, como entraves à ação das polícias e fonte de descontentamento, que tornam aquelas polícias permeáveis, por exemplo, à infiltração de elementos da extrema-direita.
Em último lugar, reforça que não estariam só inspetores do SEF envolvidos na guarda das instalações do aeroporto aquando do episódio de assassinato; estariam também presentes empresas privadas de segurança. Não querendo incriminar qualquer agente de segurança privada ou desprestigiar as suas funções, pretende com este ponto sublinhar a perversão máxima que para ela representa a contratação de empresas privadas de segurança por forças policiais: «a perversão do próprio Estado e daquilo que este deve garantir». Esta será, por isso, mais uma situação contra a qual Ana Gomes se propõe lutar no caso de ser eleita Presidente da República.
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