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É como contar camadas: de pele

Magoou-me e magoou-me e magoou-me.

Matou partes de mim.

Matou a maior parte de mim.

Matou-me toda (Doyle, 1999).


Morreu.


Nódoas negras a morar-lhe na pele: cansada. Mas nem todas as mulheres são ‘A mulher que ia contra as portas’ de Roddy Doyle. Nem toda a violência leva à morte: imediata. Nem toda a violência se faz de murros secos, dados entre portas. Nem toda a violência tem uma mão familiar (tão familiar) ao corpo sobre o qual vai assentar. Nem toda a violência tem uma boca que outrora deu voz às palavras mais bonitas que aqueles ouvidos já ouviram. E eram palavras grandes – Amor, Felicidade, Para Sempre.


Conhecemos, num saber empiricamente fundado, o impacto e repercussões dessa violência, em todas as esferas de vida das suas vítimas. Estas são, hoje, mais facilmente reconhecidas, diminuíram os olhos que fingem não as ver, que se desviam, no medo de as ver melhor e de assim adivinharem as portas que lhes batem. Mas, sabemos também, esta violência é slogan forte e investido:


- Ele nunca me bateu, no dia em que me bater eu saio de casa.


Ganha palco e luz, e, qual atriz principal, esmaga e abafa outras. Outras, sim, outras violências. Esta violência, dentro de portas, é apenas sintoma, é manifestação de algo bem mais profundo que continua a ganhar raízes bem debaixo de nós, às escondidas. Dentro de portas, temos réplicas do desequilíbrio e da desigualdade fora de portas. Ainda que mais dissimulada, continua a cultura de género, a cultura de submissão, silenciadas no quotidiano.


Será violência? Podemos falar em violência na ausência de um rosto, na falta de um corpo, de pernas e braços, que possamos ver desferir a força, o poder?


Devemos. Chama-se violência estrutural e caracteriza-se precisamente por não a reconhecermos enquanto violência. E, na ausência dos gritos audíveis, na impossibilidade de situarmos as nódoas na pele, como identificamos o seu impacto?


Aqui as nódoas espalham-se corpo fora, por cada pedaço dele, agarram-se como uma segunda camada de pele, perdemos-lhes o rasto. E, se os olhos continuam em luta, entre reação ou não ação, às nódoas, visíveis, da mulher que ia contra as portas, mal se aperceberão – mal nos apercebemos – destas. É uma violência que se desenvolve nas estruturas sociais, na organização (económica e política) da sociedade e encontra a sua génese na sua estratificação, nos seus valores e instituições. É o resultado de uma distribuição díspar de oportunidades, de recursos, de serviços e de poder, que acaba por instigar a desigualdade social. Espalha-se de forma copiosa, como chuva molha-tolos, e encharca-nos subtilmente enquanto, tolos, nos deixamos enganar pela sua aparente miudeza. Infiltra-se por terras e corpos, por árvores genealógicas das quais nunca conhece(re)mos o princípio. Não é exclusiva das mulheres, mas nelas assume uma atuação muito específica.


Na Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica) é feito um apelo a todos os Estados-membros do Conselho da Europa para “introduzirem o reconhecimento da violência doméstica como violência estrutural na definição das suas políticas e dos seus conceitos”. O que vai no sentido do exemplo dado por Galtung, o primeiro autor a trabalhar o conceito: se um marido bate à sua esposa, estaremos perante um caso de violência pessoal (mais precisamente, violência doméstica), mas quando um milhão de maridos repete o mesmo ato sobre um milhão de mulheres, isso é violência estrutural.


Por que motivo falar aqui de violência estrutural? Porque fazê-lo é já agir por antítese, é tornar visível a maquinaria silenciada da opressão social sobre as mulheres.


Não podemos despir ou livrar-nos do que não sabemos trazer. Mas se a violência estrutural andar por aí a ser falada, teremos um primeiro retrocesso do sim à cegueira. Como um laivo de aguarrás, sobre pintura a óleo, a deixar a descoberto as várias camadas. É o princípio. É o som devolvido ao grito. É a vontade de rasgar o ciclo (ciclo intergeracional de violência estrutural), nas expectativas que se passam de pais/mães para filhos(as), numa educação que repete o engavetamento das vontades em rosa-menina ou azul-menino, um engavetamento que se prolonga dos brinquedos às profissões, aos salários, aos papéis em casa e fora dela. Um engavetamento que formata: o corpo, as ideias, até os ideais e as possibilidades de Ser.


Tratá-la pelo seu nome. É meter mãos à terra e sentir a chuva nela, aquela chuva que achávamos não molhar. Terra abaixo: escavadoras em profundidade na tentativa de trazer à luz as raízes [tão] fortes desta violência [tão] sedimentada. Em nós: é como contar camadas de pele, cada camada que vestimos, ou nos vestiram, sem escolha, porque é disto que se faz a violência estrutural – deixamos de saber de quantas camadas somos feitas(os) e ficamos sem saber como seríamos, ou poderíamos ser, sem elas, por acreditamos (desde tenra idade) serem parte de nós, do nosso papel em sociedade. Acreditamos, até, serem para o nosso bem, para nossa proteção, como as camadas de roupa que acrescentámos no dia mais frio do ano – mas as camadas pesam, limitam, confinam-nos e restringem-nos os movimentos, os comportamentos e orientam-nos as ações.


De cada vez que é chamada pelo seu nome: violência estrutural – para lá de violência doméstica ou de violência contra as mulheres – temos a semente a romper cimento, de onde assoma.


Dra. Miriam Pina

Docente da FDUP

Escola de Criminologia


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