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Foto do escritorAntónio Graça Moura

“É uma ditadura, mas…”; “É uma ditadura, ponto.”

0. Não tenho interesse em dar opiniões além das que vou dar neste parágrafo: todas as ditaduras são más, a democracia política é o ponto de partida de qualquer sociedade livre e, sempre que vejo o auto-indulgente “mas” em conversas sobre ditadura, tal Cavalo de Tróia, lembro-me que é o mesmo anzol pelo qual já perdemos a liberdade.

1. O termo comunismo é como uma exposição de arte abstracta: por cada 10 pessoas, há 11 interpretações distintas. Historicamente, o comunismo surge pontualmente em diferentes ideias, ao acaso, no espaço e no tempo: do fundo da cabeça, das aulas de Ciência Política, lembro-me de Platão, que defendia uma Cidade Ideal, em que os interesses da comunidade se sobrepõem aos interesses individuais (dita colectivização), a propriedade privada seria abolida, a família também e cada um teria a função que a Cidade-Estado lhe atribuísse; também me lembro do socialismo de Thomas More, do socialismo idealista de Saint-Simon e Sismondi, do socialismo associacionista de Fourier e Robert Owen, do socialismo anarquista de Proudhon (que se digladiou com Marx no campo das ideias), etc. Finalmente, lembro-me do socialismo marxista, da dialéctica hegeliana, da análise económica da história, que culminaria na fase final do comunismo, sem Estado e as infra-estruturas burguesas. Não é disso que se trata.

2. A propósito do “Absurdo e o Suicídio”, n’O Mito de Sísifo, Albert Camus escreveu estas palavras sábias:

“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias, vem depois. São apenas jogos: primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar claras ao espírito.”

3. Não pretendo dar opiniões – nem tenho qualquer problema com essa lógica – relativas à dialéctica materialista, à luta de classes, à defesa (honrosa, diga-se de passagem) e intransigente da democracia económica e social. Tudo o que quero fazer é deixar a nota: Karl Marx fez algumas excepções quando falou na revolução violenta para a transformação do capitalismo numa sociedade proletária. Desde logo, em países como a Inglaterra, os Estados Unidos ou a Holanda ela não seria necessária – justamente porque estas três Nações possuíam uma democracia política. Na prática, o problema não é quem pensa assim.

4. O problema está justamente no desrespeito de alguns marxistas pela democracia política. Do fundo da cabeça, Lenine: n’O Estado e a Revolução (1918) assume que a excepção já não seria válida, assentando na ideia de que, nos últimos 40+ anos, as democracias políticas inglesa e americana não se tinham tornado mais política e socialmente democráticas, mas mais repressivas e autoritárias – ou seja, a solução seria, impreterivelmente, a revolução armada. Outro exemplo é Álvaro Cunhal, que, na sua entrevista a Oriana Fallaci (Junho de 1975), disse as seguintes frases:

· “Nós, os comunistas, não aceitamos o jogo das eleições (...) Se pensa que o Partido Socialista com os seus 40 por cento de votos, o PPD, com os seus 27 por cento, constituem a maioria, comete um erro. Eles não têm a maioria.”

· “Se pensa que a Assembleia Constituinte vai transformar-se num Parlamento comete um erro ridículo. Não! A Constituinte não será, de certeza, um órgão legislativo. Isso prometo eu. Será uma Assembleia Constituinte, e já basta (...). Asseguro-lhe que em Portugal não haverá Parlamento.

· “A solução dos problemas depende da dinâmica revolucionária; ao contrário, o processo democrático burguês quer confinar a revolução aos velhos conceitos do eleitoralismo.

· “Democracia para mim significa liquidar o capitalismo, os monopólios. E acrescento: não existe hoje em Portugal a menor possibilidade de uma democracia como as da Europa Ocidental.

5. No início, prometi confinar as minhas opiniões ao primeiro parágrafo, mas menti. Tenho mais isto a acrescentar: de bom grado, podemos viver pacificamente em sociedade a defender a emancipação do proletariado, a nacionalização dos meios de produção, a democracia económica e social – e com razão, digo-o com a convicção de quem acredita visceralmente na socialidade – contudo, uma sociedade democrática não consegue coabitar na mira de canos de armas, porque (i) já não será uma sociedade, (ii) nem será democrática.

6. Não tenho problemas com ideias e o comunismo, em abstracto, tem papel numa sociedade democrática; mas não consigo ficar calado quando relativizam totalitarismos do século XX, o jugo pesado das armas sob cidadãos inconformados ou quando mostram escárnio pelo processo eleitoral – independentemente de quem segura a arma, porque é para nós que a apontam. “O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias, vem depois”; primeiro é necessário que a sociedade esteja segura de que está em construção e não em processo de autofagia.

7. Para quem deseja, chamem-me contra-revolucionário ou tépido, acusem-me de defender ideias extremas que não defendo tal culto maniqueísta, cuspam no prato que é viver numa democracia livre e ocidental do século XXI; não me interessa, desde que a sociedade seja livre: pouco mais tenho a oferecer senão estas palavras e o meu desdém pelas ideias (não se trata de quem as defende) que sustentam o massacre de inocentes por um qualquer Leitmotiv – e, repito, por um qualquer, porque nada vale mais do que a vida, a democracia e a liberdade. E acrescento o seguinte: como dizia Jorge Palma, na música Picado pelas Abelhas:


“O sangue correu pelo chão

Em nome da revolução e o povo acabou por vencer

Celebrou-se a liberdade

A igualdade e a fraternidade que acabavam de nascer

Mas ao chegar a vez de cada um

Trabalhar para o bem comum

Aí começaram os dissabores

E em vez de ficarem unidos

Dividiram-se em mil partidos

Lá no fundo, todos queriam ser

Ditadores

António Graça Moura


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